A aprovação no Senado da Lei Orgânica das Polícias Militares (PL 3.045/2022), em 07/11/2023, cristaliza o modelo de organização policial criado pela ditadura, em 1969. Ao invés de promover um grande debate sobre que polícias queremos, governo federal, Ministério da Justiça e Segurança Pública, senadores e deputados escolheram ratificar uma polícia sem controle civil, com enorme espaço de atuação autônoma, militarizada e politizada ao mesmo tempo, sem diversidade interna.
O modelo reiterado pelas lideranças democráticas nasceu na ditadura militar, vinculando seu presente autoritário a uma tradição de guerra interna contra revoltas populares e uma sociedade estamental e escravista. As polícias militares que se instalam durante os anos 1970-80, embora invocando um passado de glórias, respondiam a questões atuais da virada do século. Momento em que os governos no mundo endureciam a mão direita do Estado (para lembrar a analogia de Pierre Bourdieu) para gerir crises próprias do avanço da cidadania, enquanto recolhiam a mão esquerda, encolhendo as políticas sociais.
O modelo militar foi ratificado na Constituição de 1988, sem que a participação social, os limites do uso da força, a sacralização da vida, a democracia interna, a prestação de contas e a eliminação dos tratamentos discriminatórios fossem regulamentados. Nos 40 anos seguintes assistimos ao agigantamento das instituições militares e ao sucateamento da instituição civil (também sem mecanismos de controle) e do modelo investigativo.
Ao invés de refluírem no arranjo democrático, progrediram a inquisitorialidade, a doutrina do inimigo interno, a eliminação dos desviantes, o padrão abusivo do uso da força, o autoritarismo interno, a hipermasculinização e o padrão racista de atuação, gerando crises atrás de crises, fortalecendo uma corporação policial temida e evitada pelos segmentos em luta por justiça social: mulheres, juventude, negros, periféricos, trabalhadores, professores, sem-terra, sem-teto, moradores de rua, entregadores, crianças pobres, pessoas LGBTQI+.
A geração que conseguiu estabelecer uma democracia eleitoral e o avanço da cidadania hoje teme um novo golpe autoritário com a adesão de forças policiais que não acreditam na democracia nem nos direitos humanos nem nos governantes eleitos. As corporações policiais não são homogêneas internamente, mas é constatado o crescimento da politização de extrema direita nas fileiras policiais, produzindo uma confrontação aos representantes e aos valores de uma segurança pública cidadã. As dissidências internas às vezes são abertamente reprimidas, e muitas vezes encobertas por processos administrativos draconianos e por adoecimentos dos trabalhadores da polícia.
A geração democrática continua dando as costas ao problema dos direitos civis e às formas democráticas de policiamento, prevenção da violência e tratamento dos delitos. E, com isso, entrega de bandeja todo o debate da segurança nas mãos das lideranças extremistas. Os governos democráticos financiaram a adoção de doutrinas, equipamentos, sistemas e modos de gerir que foram forjados nos governos neoliberais e na doutrina da guerra ao terror. Um exemplo é o modo como as novas tecnologias foram aplicadas no policiamento ostensivo no Brasil. Ao invés de servir para dar mais controle e transparência à ação policial, reduzir vieses, aumentar a responsabilização das chefias, instruir e apoiar tecnicamente a ação policial nas ruas, caras tecnologias são usadas para mecanizar procedimentos de filtragem racial, marcar territórios e tipos sociais taxados como perigosos e vigiar as corporalidades divergentes.
Assim, não é exatamente com surpresa, mas com desgosto que eu acompanho a aprovação da LOPM sem discussão com a sociedade civil, ao avesso dos movimentos sociais que pediram ao Ministro Dino, ao Ministro Padilha, ao Senador Contarato, às lideranças dos partidos de esquerda no Congresso, audiências públicas sobre as leis orgânicas das polícias militares e civis. A recusa ao debate é a parte que mais dói em quem lutou pela segurança como um direito social neste último meio século.
Em nome dessa luta pela vida e o direito de existir na pluralidade, é que me dirijo ao presidente Lula, um articulador da paz e justiça social, pedindo seu veto a pontos incompatíveis a uma polícia democrática e ao programa de governo que ele defendeu. Não é possível uma organização pública limitar o acesso das mulheres às suas carreiras. Não é possível uma polícia ser democrática sem uma ouvidoria independente e civil, sem estar subordinada ao poder civil da Secretaria de Segurança Pública e dos governadores. Uma via de ascensão eleitoral especial, com possibilidade de fazer campanha política no exercício do cargo não é aceitável. Assim como não é aceitável a ausência de mecanismos de democracia interna e diversificação racial, de gênero e orientação sexual. Não há como compatibilizar a polícia com a democracia sem uma doutrina do uso da força e os controles internos e externos de avaliação de abusos. Não é democrático ampliar as competências da polícia militar na área ambiental sem discutir com os demais atores sociais as consequências.
A reforma tributária é um objetivo fundamental da centro-esquerda no Brasil, mas ela não pode ser trocada pela reforma do entulho autoritário que vem sendo arrastado pelas nossas polícias.
JACQUELINE SINHORETTO - Socióloga, professora da Universidade Federal de São Carlos e associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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