Em 1978, o Brasil presenciou o nascimento da maior organização política antirracista da segunda metade do Século XX, o Movimento Negro Unificado (MNU). Existente até os dias de hoje e com capilaridade nacional, o MNU nasceu como resposta à violência policial.
Naquele ano, dois homens negros, Nilton Lourenço e Robson Silveira da Luz, foram executados por policiais militares, no segundo caso, inclusive, com sinais de tortura. Os atos de violência por parte do Estado motivaram militantes antirracista a irem às ruas depois de anos sem mobilizações, por conta das pressões do regime militar.
A óbvia luta por sobrevivência de pessoas negras e a denúncia acerca da violência policial serviram de arma para a ruptura de algo, até aquele momento, inatingível: o mito da democracia racial. Se o regime militar conseguiu apagar as desigualdades raciais no país em diferentes áreas com o apagão de dados do Censo de 1970, na segurança pública isso nunca foi possível. A cor das vítimas estiradas no chão era sempre a mesma; em 2023, isso ainda não foi alterado.
A situação, neste aspecto, persiste. Independentemente de governos progressistas ou conservadores, a política de segurança pública é a principal ferramenta de controle de pessoas negras, com a delimitação espacial das cidades, regulação da expectativa de vida e direcionamento de possíveis futuros.
Em 2023, operações ganharam atenção em São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro. A história de 1978 parece se repetir ano após ano, com uma maioria esmagadora de pessoas negras vítimas da violência. Reportagem feita pela Alma Preta a partir de dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que em 2021, em 322 cidades brasileiras todas as vítimas de ações policiais eram pessoas negras; os dados foram divulgados no 16° Anuário.
Naquele período histórico de regime militar, o objetivo era o cessar da violência e romper com o mito da democracia racial. Vitoriosa, aquela geração conseguiu enfraquecer a percepção ilusória de um país que vive o paraíso das raças. Apesar disso, a seletividade racial persiste até os dias de hoje, com números alarmantes, que em 2017 passaram da casa das 60 mil vítimas de homicídio, segundo dados do Fórum.
A partir da década de 1990, influenciado pelo movimento Hip Hop e, em particular, pelo grupo de RAP, Racionais MC`s, o movimento negro passou a associar a violência de Estado a um projeto de genocídio. Se com Abdias do Nascimento o genocídio era descrito como uma política de embranquecimento da população, pautada a partir do Congresso Internacional das Raças de 1911, a dimensão de genocídio dos anos de 1990 se ampara sobretudo na violência policial e nas dinâmicas urbanas. É o matar, ou o deixar morrer.
Mesmo que essa dimensão não seja reconhecida no plano internacional por mecanismos como a Organização das Nações Unidas (ONU), há um consenso social sobre a seletividade racial da violência, comprovada pelos dados públicos divulgados, inclusive a respeito das estatísticas criminais publicizadas pelo FBSP, e reafirmada pelas respostas da sociedade, costumeiramente acompanhadas de comentários, bandeiras e falas denunciando o projeto genocida do Estado brasileiro.
Em 2020, a Coalizão Negra por Direitos, grupo que reúne centenas de grupos antirracistas no país, lançou a campanha “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”. A proposta é a de conseguir uma inclusão real e concreta de pessoas negras dentro do projeto de nação, com a garantia de direitos, para assim assegurar o exercício pleno da democracia. Na concepção da Coalizão, o racismo sabota a democracia brasileira.
A segurança é um direito, mesmo que dificilmente seja percebida desta forma por qualquer pessoa negra ou de periferia. Vista como sinônimo de violação, há uma luta histórica para que esse princípio social seja assegurado para todos.
Ou alguém acha possível viver em uma democracia onde centenas de pessoas, a grande maioria negras e pobres, são executadas em operações patrocinadas pelo Estado? O acúmulo das ações demanda o enterrar do mito da democracia racial, a consolidação da ideia da existência de um projeto de extermínio de pessoas negras, e a necessidade de superar o racismo para a construção de um estado democrático.
Edson Cardoso, intelectual baiano, acredita que o movimento social mais vitorioso da história brasileira é aquele composto por pessoas negras. Ao lado dos povos indígenas, que povo poderia resistir a 388 anos de escravidão, projetos nacionais de segregação e embranquecimento, seguidos de ações genocidas, na maioria das vezes materializadas por ações policiais e da violência urbana?
PEDRO BORGES - Editor Chefe da Alma Preta e mestrando em História pela Unicamp, onde estuda o Movimento Negro Unificado.
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