No último dia 13, assistimos estarrecidos a um fato que nos chamou à atenção por diversas circunstâncias. Em linhas gerais, um policial civil sacou uma pistola e ameaçou um adolescente que havia praticado furto. Uma policial militar feminina assistiu a tudo e pouco, ou melhor, nada fez para reverter o quadro. O jornalista, que grava a grotesca cena, passou a fazer comentários provocativos para a policial militar feminina. O caso nos leva a uma grande reflexão sobre o comportamento de todos os envolvidos na ocorrência.
Meu amigo Oscar Vilhena Vieira, a quem tive a oportunidade de levar algumas vezes na Polícia Miliar para palestras e debates, em sua coluna semanal do dia 18 de novembro, no jornal Folha de São Paulo, assim se pronunciou: uma “policial militar assiste, absolutamente passiva, a um homem armado (depois identificado como investigador) perseguir e ameaçar um jovem negro na saída de uma estação de metrô em São Paulo. [A policial militar] Só abandona seu estado de letargia para chutar o jovem negro […]”. Em relação ao policial civil, que sacou a arma e poderia ter causado uma tragédia, nenhuma linha a respeito.
Gostaria de dividir a cena em três aspectos, e discuti-los sob diversos pontos de vista.
Um policial civil transitava com sua esposa pelo Parque da Juventude, na zona norte de São Paulo, quando houve a tentativa de furto, sendo sua esposa a vítima. Ele não teve dúvida: sacou sua arma e a brandia ao vento, tentando amedrontar e submeter seu oponente à sua autoridade e à sua “macheza”. Algo completamente fora das normas e dos parâmetros admitidos pelos regulamentos internos de qualquer corporação policial. Sua ação se aproximava mais de um surto psicótico e irracional do que de uma ação praticada por profissional da área de segurança pública. Uma moça, que transitava pelo local, tentava, à sua maneira, conter a ação desvairada, truculenta e arbitrária do policial civil.
Em dado momento, aparece uma segunda personagem. É uma policial feminina, fardada, acuada em um canto de parede, como se aguardasse a solução “divina” para o imbróglio que os seres humanos, mormente em países de fraca densidade institucional, se metem. Ela foi instada a agir. Não se moveu. Aguardava atávica e acossada ao desfecho dos fatos.
Há, no entanto, um terceiro personagem: o jornalista que fazia as filmagens. Um prato cheio. Um “furo de reportagem”. Ele, além de filmar, não se furtou a fazer seus comentários agressivos e provocativos em relação apenas à, ressalte-se, policial feminina. Uma coragem brutal, pois nada mencionou em relação ao policial civil que brandia sua pistola ao léu.
Conhecendo um pouco minha Instituição, como coronel da reserva, posso dizer que, nesse momento, o Comando da Instituição deve estar entre dois dilemas éticos e morais: punir severamente a policial feminina ou expulsá-la da Polícia Militar. Não deve fugir disso. O ponto nevrálgico é a punição para que outros policiais militares, que transitam fardados, não se omitam em relação a fatos criminosos por que se deparem. Realmente, é grave a conduta dela, pois aprendemos, desde “recruta”, que não podemos nos omitir diante de práticas delituosas, especialmente quando estamos fardados. Essa prática (omissão em atender quando se está de folga, mas uniformizado) é um tanto comum nas cidades grandes dos Estados Unidos: policiais fardados alegam não estar em serviço e pedem para a vítima acionar o 911 (número de emergência naquele país). Não é o caso das normativas nacionais.
Mas o que mais me chama à atenção são as repercussões do fato.
A Folha publicou charge no dia seguinte. As matérias, publicadas e exibidas em diversos meios de comunicação, (audiovisuais e escritos) dão conta da omissão da policial feminina. E praticamente nada falam da conduta do policial civil. Chega a ser surreal. É o apêndice falando pelo principal.
Vejamos.
O jornalista chega a ser rude com a policial feminina. Dirige-lhe impropérios e ofensas. Mas não fez o mesmo com o investigador. Também não vi ninguém lhe atribuir a pecha de “misoginia”. O “jornalista” passa a entrar num embate verbal com a policial feminina, alegando que ela “não presta”, e “não faz nada”. Em relação ao policial civil, que estava armado e que realmente deu causa a toda a celeuma, silêncio absoluto do jornalista. E da imprensa em geral, também, a exceção do G1, que, honestamente, colocou em pauta todas as atitudes e não focou na policial feminina.
Há cerca de quatro anos, quando assumi franca e pública opção antibolsonarista, por princípio e por questão de caráter, um fraterno amigo me instigou com uma admoestação-advertência: “por que você se mete a contrariar alguém que, nesses últimos 40 anos, foi o único a nos defender, e por qual razão você se posta contra quase toda uma corporação, que sempre lhe foi simpática, se, na hora de eventuais ataques do PCC será essa mesma Instituição que irá socorrer-lhe?”
Há muito a se discutir sobre isso. Não me postei contra minha Instituição, mas contra um presidente da República. Mas ele, parece, se corporificou em nome das Instituições fardadas do país. O que esse meu amigo quis, na realidade, dizer é: na hora do aperto, você vai ficar sozinho, porque parcela das entidades de direitos humanos, dos pesquisadores acadêmicos e dos jornalistas sempre estarão contra “nós”. Talvez ele esteja parcialmente correto. E é mais ou menos isso que vemos nesse momento. Mas, não seria da minha índole, formação pessoal e formação de caráter assumir posições por razões meramente pragmáticas. Dentro da filosofia moral, não sou um consequencialista puro.
Há de haver vozes discordantes, para o debate e os avanços da própria humanidade. Ainda que sejam minoritárias. Ademais, vamos aguardar o que ocorrerá com esses dois policiais em suas respectivas Instituições.
GLAUCO SILVA DE CARVALHO - Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo.
Edição N° 210 | fontesegura.forumseguranca.org.br/