Em outubro, o então Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, viajou até São Lourenço da Mata, em Pernambuco, onde anunciou um novo pacote de investimentos em segurança. Ao discursar, deixou transparecer o ponto de vista do governo: “Os maiores especialistas da segurança pública são os policiais brasileiros”, disse Dino. A fala tem conotação política, já que o governo tenta angariar simpatia de uma categoria que se bolsonarizou nos últimos anos. Mas ela também reflete uma visão que se tornou hegemônica no Brasil, segundo a qual só a polícia sabe o que é bom para a segurança pública. Pesquisadores, analistas e representantes da sociedade civil não cabem no debate.
Em novembro, o desembargador Adriano Roberto Linhares Camargo, do Tribunal de Justiça de Goiás, criticou abusos cometidos pela Polícia Militar goiana e defendeu o fim das PMs no Brasil. A crítica era simplista e não trazia novidades, mas nada justifica a reação que acarretou. O governador Ronaldo Caiado (União Brasil-GO) disse que o desembargador ofendeu o estado de direito ao criticar a PM. Dias depois, o tribunal puniu Camargo com uma suspensão – decisão revertida mais tarde pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O recado foi claro: críticas às polícias, sobretudo as militares, não serão mais toleradas.
Em dezembro, por fim, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a cassação da liminar que obrigava policiais a usarem câmeras corporais durante operações montadas em resposta a ataques contra agentes do Estado. O tribunal alegou que as câmeras custam muito caro. Com isso, deixou as polícias livres para fazerem o que bem entenderem, sem supervisão. Talvez os juízes tenham esquecido que, há poucos meses, policiais mataram 28 pessoas no Guarujá em retaliação à morte de um agente da Rota.
Esses três exemplos são uma pequena amostra do clima que impera no Brasil quando o assunto é segurança pública. Não surpreendeu ninguém, portanto, que o Congresso tenha aprovado com folga – e Lula tenha sancionado – as novas leis orgânicas da Polícia Civil e da Polícia e dos Bombeiros Militares. Governo e oposição votaram alinhados, a favor.
Os projetos, embora tenham recebido críticas histriônicas, não são o fim do mundo. São, em vez disso, mais do mesmo: o que era ruim, continua sendo. O Brasil perdeu uma nova chance de reformar as polícias, sobretudo a militar, que preservou sua autonomia de gestão e sua vinculação nebulosa ao Exército. Outra oportunidade não aparecerá tão cedo.
Discutidas há mais de duas décadas, as leis orgânicas ficaram travadas nos últimos anos devido a uma disputa entre policiais civis e militares. Enfim, a Associação Nacional de Delegados do Brasil (Adepol) e a Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme) chegaram a um acordo. A lei das polícias civis trata de questões exclusivamente corporativas. É a lei das PMs que tem implicações para a democracia.
Lula sancionou o projeto com alguns vetos cruciais. Impediu, por exemplo, que as ouvidorias das PMs fossem subordinadas ao comandante-geral da tropa, o que dificultaria a fiscalização do trabalho policial. Impediu também que policiais de folga pudessem participar de manifestações políticas. E resolveu um jabuti que, a pretexto de aumentar a presença de mulheres na PM, acabaria por limitá-la, impondo um teto de 20% às vagas femininas.
O texto tem pontos positivos. Em parte, ele substitui o regramento autoritário que o país herdou da ditadura por um mais moderno. De agora em diante, policiais e bombeiros estão submetidos às regras de governança do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que estabelecem critérios de uso proporcional da força, transparência e prestação de contas. Ao menos em tese, as PMs não poderão mais recusar o fornecimento de dados sobre vitimização e letalidade policial, que a lei assinala como públicos. O conceito de “segurança interna”, que remete a uma ideia de guerra e inimigo interno, foi substituído por “segurança pública”, termo mais alinhado a uma concepção de segurança como direito social universal.
Outros problemas, no entanto, sobreviveram à caneta presidencial. Embora não pudesse desvincular a PM do Exército – para fazer isso, seria preciso uma emenda à Constituição –, o governo poderia ter esclarecido o que, afinal, significa o fato de a polícia ser “força auxiliar” dos militares. A expressão é vaga e acarreta um duplo comando: afinal, as PMs obedecem aos governadores ou ao Exército? Essa duplicidade abre uma brecha para voluntarismos em momentos de crise – quando, por exemplo, um presidente da República tenta arregimentar apoio das polícias militares para seu projeto pessoal de poder.
Essa confusão institucional é uma particularidade brasileira. Muitos países, entre eles Chile e Espanha, têm polícias militares, mas elas não têm vínculo com as Forças Armadas. Respondem unicamente ao poder civil – o que, além de evitar a confusão do duplo comando, ajuda a direcionar os policiais para uma abordagem menos militarizada. Afinal, as polícias têm o dever de proteger os cidadãos e garantir a eles o direito à segurança, não eliminar ou neutralizar um inimigo, como é o caso das Forças Armadas. Na França, quando se trata de assuntos militares, a polícia responde ao Ministério da Defesa; quando o assunto é policiamento, responde ao Ministério do Interior. Há uma separação clara de funções.
Seria importante que o Brasil, da mesma forma, desse nome aos bois: quando, com autorização de quem e por quanto tempo as PMs podem servir ao Exército? Dissipar esse vínculo criado pela Constituição faria bem à democracia. Mas isso não foi feito, embora essa demanda tenha sido levada ao governo durante a tramitação da proposta.
Em um ponto específico, a situação, em vez de continuar como estava, piorou. O decreto-lei 667, baixado durante a ditadura, em 1969, e que até agora regulava a organização das PMs e dos Bombeiros Militares, previa a existência de secretarias estaduais de segurança pública para administrar as polícias. A nova lei não prevê isso explicitamente, o que é um retrocesso. Os comandantes das tropas podem entender que cabe a eles responder diretamente aos governadores de seus estados e, com isso, podem pressionar pelo fim da subordinação às secretarias de segurança. A mudança não apenas implica menor controle social sobre a polícia como aumenta o poder político dos policiais – que, não custa lembrar, envolveram-se recentemente em maquinações golpistas e em motins, como o do Ceará.
Não haveria como ser diferente: o espírito do projeto, encampado desde 2019 pela bancada bolsonarista, nunca foi o de reformar a PM, e sim de reforçar em lei o poder das polícias. O projeto sancionado por Lula não revoga, como seria ideal, o decreto de 1969. Isso foi fruto da articulação dos policiais militares. Em 2019, o governo Bolsonaro incluiu no decreto regras generosas de aposentadoria e pensão para as polícias estaduais. Se o decreto fosse revogado, os governadores poderiam reabrir o debate para acabar com esse benefício.
O governo, por sua vez, não demonstrou em nenhum momento disposição política para comprar briga com a oposição e, sobretudo, com as polícias. A influência da PM nos rumos da segurança pública é um fato dado, como sinalizam os discursos de Flávio Dino (governo) e Ronaldo Caiado (oposição). A condução do projeto, na Câmara, coube a um oficial da reserva da PM de São Paulo, o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP). No Senado, coube ao líder do governo, senador Fabiano Contarato (PT-ES), que é delegado de carreira. O texto só foi apresentado na véspera das votações no Congresso, estratégia acordada entre diferentes partidos para impedir que discordâncias pontuais travassem a aprovação.
Se é verdade que o bolsonarismo instaurou um clima favorável às polícias, é durante o governo Lula que parte desses frutos está sendo colhida – com apoio do Planalto. Sob o pretexto de valorizar a carreira policial, o Brasil consolidou o modelo institucional arcaico que herdamos da ditadura e reforçou em lei, a autonomia e o poder político das PMs.
*O artigo foi originalmente publicado no site da Revista Piauí, no dia 19/12/2023. O texto pode ser acessado pelo endereço:
RENATO SÉRGIO DE LIMA - Diretor-Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor da FGV EAE-SP.
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