Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro de Segurança Pública
As mortes violentas com causas identificadas registradas no Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, podem ser classificadas como homicídios (agressões e mortes por intervenção legal), suicídios ou mortes decorrentes de acidentes. Quando não se consegue identificar a intencionalidade envolvida no evento que desencadeou o primeiro processo mórbido, o óbito é classificado como Morte Violenta por Causa Indeterminada (MVCI). Uma parcela significativa de MVCIs, ou o crescimento desse indicador ao longo do tempo, implica, portanto, perda de qualidade dos dados e dificuldades para se analisarem corretamente os fenômenos violentos letais no país.
Entre 2011 e 2021, foram registradas 126.382 MVCIs no País. Neste cenário de elevada incerteza sobre intencionalidade dos óbitos, ignorar a ocorrência das MVCIs pode influenciar negativamente diagnósticos e formulações de políticas públicas e impedir intervenções em aspectos sensíveis. Afinal, as MVCIs são, na realidade, homicídios, acidentes ou suicídios não identificados, o que faz com que a contagem dos óbitos de intencionalidade conhecida, registrados no SIM, apresente uma visão parcial de realidade.
O gráfico 3 aponta a distribuição percentual das mortes violentas segundo a sua intencionalidade, entre 2011 e 2021. Note que, a partir de 2019, pode-se observar significativo crescimento das MVCIs, sendo que, na média, mais de 10% do total de mortes violentas tiveram sua intencionalidade não definida.
Buscando identificar os homicídios indevidamente registrados como MVCI, o que chamaremos aqui de “homicídios ocultos”, Cerqueira (2012; 2013) desenvolveu uma metodologia de análise dos microdados de óbitos, baseada em modelos estatísticos, para análise com dados categóricos do tipo logit e multinomial logit.
Com base nesses trabalhos, e a fim de analisar a recente deterioração na qualidade dos dados do SIM, Cerqueira e Lins (2023) revisitaram o tema e desenvolveram uma nova abordagem para o problema, que utiliza técnicas de machine learning – ou, mais precisamente, métodos de aprendizado supervisionado de máquinas – em problema de classificação, com base nos microdados dos cerca de 3 milhões e 396 mil mortes violentas ocorridas no Brasil entre 1996 e 2021. Grosso modo, o principal algoritmo utilizado “aprende” as características associadas às vítimas e aos aspectos situacionais relacionados aos homicídios e acidentes/suicídios registrados no SIM (i.e., idade da vítima, sexo, raça/cor, estado civil, escolaridade, local do óbito, instrumento da causa básica do óbito, ano, mês, dia do óbito e UF de ocorrência) e classifica as MVCIs de acordo com a semelhança destas aos óbitos conhecidos.
Os principais resultados do trabalho de Cerqueira e Lins (2023) servem para que possamos melhor qualificar e analisar a prevalência de homicídios nas Unidades Federativas, em particular nos últimos anos.
Com base na metodologia apresentada, estimou-se em 49.413 o total de homicídios classificados como Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCIs) que teriam condições de ter sua intencionalidade estabelecida. Ou seja, entre 2011 e 2021, o Estado foi incapaz de identificar como homicídio parcela que corresponde a 39,1% dos óbitos tratados como MVCI. Em média, o número de homicídios ocultos ao ano foi de 4.492. Este índice corresponde à média anual de homicídios que ocorre no estado de São Paulo, ou à queda sem sobreviventes de 150 Boeings 787 lotados, em tragédias totalmente invisibilizadas.
Apesar do elevado número absoluto de homicídios ocultos, a soma destes aos homicídios registrados no SIM, isto é, os homicídios projetados, parece não alterar a trajetória da criminalidade violenta no Brasil. De acordo com o gráfico 4, a diferença entre a taxa de homicídios registrados e projetados parece restrita ao nível e não à tendência das séries.
Ainda assim, a contabilização dos homicídios ocultos traz novo sentido à análise sobre a prevalência de homicídios no Brasil, permitindo a formulação de um quadro mais acurado da trajetória dessas mortes. Em média, a taxa de homicídios projetada supera a taxa registrada em 8,3%. No período analisado, o acumulado de homicídios projetados totalizou 665.508 casos, ante os 616.095 óbitos oficialmente registrados.
O impacto da inclusão de homicídios ocultos em análises sobre violência evidencia-se no cálculo das variações anuais de crescimento da taxa de homicídios. O gráfico 5 apresenta a diferença entre a variação percentual anual associada às taxas de homicídios registrados e projetados. A análise feita ano a ano mostra uma expressiva divergência na dinâmica das taxas ao final do período analisado, a partir de 2018. Para exemplificar, enquanto a taxa de variação anual de 2019 indica redução de 22,1% na taxa de homicídios registrados, no caso da taxa de homicídios projetados este indicador indica redução de 17,0%, diferença de cinco pontos percentuais, resultado que se mostra relevante para avaliações de políticas públicas.
Na análise subnacional, a inclusão dos homicídios ocultos permite identificar Unidades Federativas de maior incidência de homicídios. De acordo com o gráfico 6, as UFs com maiores populações residentes são aquelas de maior número absoluto de homicídios ocultos, sendo São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais responsáveis por 72,5% dos homicídios ocultos no país. O gráfico da direita apresenta a distribuição das taxas de homicídios ocultos por 100 mil habitantes, por UF. A mediana das taxas indica que o Rio de Janeiro, a Bahia e São Paulo permanecem entre as UFs de pior resultado, desta vez ao lado de Roraima e Rio Grande do Norte. A inclusão dos homicídios ocultos no cálculo da taxa de homicídios (projetados) por 100 mil habitantes aumenta a média estadual de homicídios e produz troca de posições entre as UFs mais e menos violentas.
Comparando as taxas de homicídios registrados e as taxas de homicídios projetados, respectivamente, vemos que em 2021 o Amapá e a Bahia continuam como as duas UFs mais violentas do país (vide Tabelas 1 e 6 no relatório completo). Contudo, quando considerados os homicídios ocultos, a terceira posição deixa de ser ocupada pelo Amazonas, passando a figurar o estado de Roraima. No inverso do ranking de violência, São Paulo deixa de ocupar a posição do estado mais pacífico do país, que passa a ser de Santa Catarina. Na terceira posição, Minas Gerais perde o posto para o Distrito Federal.
* O texto original foi publicado no Atlas da Violência 2023 e pode ser lido na íntegra no link:
Referências bibliográficas: CERQUEIRA, D. Mortes violentas não esclarecidas e impunidade no Rio de Janeiro. Economia Aplicada, v. 16, n. 2, p. 201-235, 2012. CERQUEIRA, D. Mapa dos homicídios ocultos no Brasil. Brasília: Ipea, jul. 2013. (Texto para Discussão, n. 1848). Disponível em: CERQUEIRA, D.; LINS, G. Mapa dos homicídios ocultos no Brasil entre 1996 e 2021. Brasília; Rio de Janeiro: Ipea, 2023. (Texto para Discussão). No prelo.
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