ARTICULISTAS SAÚDE MENTAL
NOVA LEI ORGÂNICA NACIONAL DA POLÍCIA CIVIL: A saúde mental de quem investiga importa? NÃO
O que nos resta é cobrar do governo federal o cumprimento da função de coordenação nacional prevista no SUSP, regulando o financiamento e repasse para organizações policiais para que tomem medidas efetivas para a preservação da saúde mental de policiais.
03/01/2024 20h38
Por: Carlos Nascimento Fonte: Edição nº 212 | fontesegura.org.br/

Em um país que disputa o primeiro lugar em desigualdade social, é difícil eleger qual é o problema mais prioritário a ser combatido: desemprego, fome, miséria, falta de moradia, desindustrialização e muitos outros. Porém, como disse a professora Jacqueline Muniz (UFF) em recente entrevista, a segurança pública é o “sambódromo por onde os (demais) direitos desfilam”.

Ao longo dos nossos textos aqui no Fonte Segura, temos uma luta constante: a saúde mental dos policiais, mais precisamente a falta de políticas públicas para a saúde mental dos trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública. Governos vão e vêm, Parlamentos vão e vêm e ainda temos dificuldade em acreditar que não há priorização sobre a saúde mental da categoria que mais se mata no Brasil há anos.

Desta vez, para manter a atualidade desta luta inglória, vamos verificar o que a recém-aprovada Lei Federal nº 14.735/2-23, que instituiu a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (LONPC) diz, ou deixou de dizer, sobre a saúde mental dos policiais civis.

Apenas para situar quem não tem familiaridade com o tema, desde 2018 o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em suas publicações, vem expondo, com destaque, como o trabalho policial no Brasil é o trabalho no qual o s*!cídio[1] é a maior causa de morte, exceto em 2020, quando a maior causa de mortes de policiais foi a Covid-19. Somente em São Paulo, nos últimos meses anteriores a este texto, tivemos cinco ocorrências, algumas dentro do local de trabalho, tanto na Polícia Militar como na Polícia Civil.

Isso tornou a saúde mental dos policiais uma prioridade para os governos estaduais e federal até 2022? Em hipótese alguma. Obviamente, tivemos algumas poucas e ótimas iniciativas e projetos regionais sobre o tema. Mas não se tornaram uma política pública ampla ou com resiliência para se manter.

No ano de 2023, o atual governo federal deu um passo tímido no tema: acrescentou no Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), através da edição da Lei federal n. 14.531/2023, diversos dispositivos sobre a saúde organizacional e mental dos policiais, como o Pró-Vida. A timidez não é abstrata: quantos recursos humanos e materiais foram destinados para  a materialização desses dispositivos? Qual a previsão orçamentária para esses dispositivos para 2024? Voltaremos aos mesmos percalços na LONPC mais adiante.

Quase no final do ano, tivemos a publicação da LONPC. O que ela fala sobre políticas públicas para a saúde mental dos policiais civis? A primeira menção quase expressa é no inc. IX do artigo 7o, que lista “unidades de saúde da polícia civil” como órgãos essenciais da estrutura organizacional. O artigo 17 diz que os entes federativos “ficam autorizados a instituir” unidades de assistência “psicológica, psiquiátrica e terapêutica”, conforme o respectivo orçamento do ente. Numa interpretação beirando a Síndrome de Poliana, podemos incluir o inc. XIII do art. 4o, que fala em “política de gestão direcionada à proteção e à valorização dos seus integrantes” como princípio institucional básico. E isso é tudo.

Essa redação na LONPC é suficiente para considerarmos que ela se preocupou com a saúde mental dos policiais? Depende se será apenas uma carta de intenções que, supostamente, será colocada em prática ou apenas será uma legislação-álibi, para reduzir a pressão social sobre o tema de forma dilatória[2]. Em linhas gerais, podemos adiantar que o veredito é pela legislação-álibi.

Inicialmente, a LONPC não reflete o que os policiais civis consideram os maiores problemas de suas organizações, como podemos verificar no estudo profissiográfico do Ministério da Justiça de 2012 e em praticamente todos os estudos sobre a saúde mental dos policiais nos quais esses profissionais foram ouvidos. Esses problemas, como assédio moral e falta de reconhecimento, são ingredientes frequentes dos problemas de saúde mental dos policiais. Fora as pouquíssimas redações extremamente genéricas, sem poder coercitivo perante os entes federativos, não há nada na redação da LONPC que obrigue os governos estaduais a implementarem qualquer medida para preservar a saúde mental dos policiais civis.

As pessoas do ramo jurídico podem alegar, como ocorreu em relação aos vetos, que haveria uma suposta inconstitucionalidade em exigir dos Estados colocar em prática as iniciativas sobre saúde mental previstas na LONPC. Porém, temos um outro exemplo de lei que estabeleceu uma série de obrigações para a União, Estados e municípios: a Lei federal 8.080/90, o SUS. Quem tiver a curiosidade de ler a lei mais importante da saúde pública do Brasil, verá como essas obrigações estão na redação: atribuições expressas para os órgãos de Saúde, não importa o ente; instituição de comissões e conselhos deliberativos; direção nacional centralizado os parâmetros; capítulo específico para saúde da mulher, saúde indígena, financiamento e planejamento orçamentário, entre outras formas.

Para a saúde mental dos policiais na LONPC, não temos nenhum elemento de deliberação, obrigação, conselhos ou comissões. “Unidade de Saúde” para policiais civis não implica, necessariamente, política de saúde mental e não tem nenhuma possibilidade de obrigar os Estados a cumprir. Afinal, todos vão alegar que não possuem recursos para tanto, que os policiais podem usar a rede pública, visto que alguns políticos chegam a listar Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como equipamento para policiais que estiverem precisando de ajuda com a saúde mental, como se a categoria policial não tivesse suas particularidades. O mesmo raciocínio vale para “ficam autorizados a instituir” unidades de assistência “psicológica, psiquiátrica e terapêutica”. Interessante notar que a LONPC já prevê a desculpa orçamentária.

O que nos resta é cobrar do governo federal o cumprimento da função de coordenação nacional prevista no SUSP, regulando o financiamento e repasse para organizações policiais para que tomem medidas efetivas para a preservação da saúde mental de policiais, bem como cobrar dos governos estaduais a execução de políticas públicas que realmente possam cuidar de quem investiga.

A LONPC foi uma oportunidade perdida nesse tema.

[1] Optamos por não usar a “palavra com s” na sua grafia correta porque estudos recentes mostram que o algoritmo da internet reduz ou corta completamente o alcance de qualquer texto que mencione tal palavra, como se deixar de falar ou refletir criticamente sobre o assunto fosse reduzir o problema.

[2] Raciocínio desenvolvido com base na obra “Constituição Simbólica” do Professor Marcelo Neves (UFPE).

LÍVIO JOSÉ LIMA E ROCHA - Investigador da Polícia Civil do Estado de São Paulo desde 1999. Mestre em Gestão e Políticas Públicas (FGV) e doutorando em Políticas Pùblicas (UFABC). Pesquisador no Grupo de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (Mackenzie). Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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