O governo teve um bom ano no Congresso. As propostas mais importantes, marcadamente nas áreas econômica e social, foram aprovadas. Há, porém, uma realidade legislativa que o presidente Lula não havia tido de enfrentar no passado e que hoje é um problema do tipo “bola de neve”: nosso parlamentarismo disfarçado. Essa é a avaliação do líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), para quem há potencial de uma crise séria diante dessa situação.
“Entender (a nova realidade), ele (Lula) entendeu. Gostar, ele não gosta”, afirmou o senador nesta segunda-feira 18 em um café com jornalistas. Wagner não usou a expressão “parlamentarismo disfarçado”, mas disse que concordava com ela, ao ser indagado por CartaCapital. “Acho que o Congresso não entendeu que o governo está sob nova direção.”
Graças à obrigação de o governo pagar as obras que inserem no orçamento, deputados e senadores inflam a verba das chamadas “emendas”. São gastos sem critério ou planejamento, pensados para agradar as bases eleitorais dos congressistas e só. “É uma anomalia do sistema que se consolidou nesses quatro anos e que se manteve neste ano”, afirmou Wagner, em referência ao finado, mas nem tanto, orçamento secreto.
Encontro com jornalistas promovido pelo líder do governo no Senado, Jaques Wagner
Em 2019, primeiro ano de Jair Bolsonaro no poder, eram 8.912 emendas parlamentares, um total de 17,3 bilhões de reais, conforme dados do Siga Brasil, um sistema mantido na web pelo Senado. No ano seguinte, o da estreia do orçamento secreto, havia 14.103 emendas e, em valores, mais do que o dobro (36,1 bilhões).
Em 2023, orçamento aprovado no último mês de Bolsonaro e já com a futura base lulista no centro das negociações, o secretismo acabou, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Permaneceu, porém, a lógica de o Congresso apropriar-se de um naco enorme do caixa federal e direcioná-lo para o que quiser. São 19.520 emendas que, somadas, perfazem 35,8 bilhões.
Para 2024, o Legislativo tenta ampliar de novo o valor das emendas, para cerca de 50 bilhões. O fim da história será conhecido nos próximos dias, com a votação do orçamento e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). “Não sei se o governo terá tanto dinheiro para investir (quanto o Congresso terá com emendas)”, declarou Wagner.
“Emendas” com quantia crescente e (palavra de Wagner) “absurda” têm potencial para provocar uma crise entre o governo e o Congresso. “Eu não vou chamar ninguém para a briga. (Mas) Em algum momento, vai ficar impossível (governar)”, disse o senador petista.
O líder do governo é um crítico da ideia que faz a cabeça de parte do Congresso e do Judiciário como solução para crises de governabilidade, como essa que o “parlamentarismo disfarçado” tem potencial para causar. “O semipresidencialismo, para mim, é um caminho que não funciona”, disse. “Deveriam ter a coragem de fazer um novo plebiscito.”
O semipresidencialismo, eufemismo para parlamentarismo, é apoiado pelos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Supremo, Luís Roberto Barroso. Lira tem na gaveta uma proposta parida em 2022 por um grupo de trabalho que ele criara. Em 12 de dezembro, Barroso participou de evento no STF para lançar um livro que defende a ideia (o prefácio da obra é dele). O decano da Corte, Gilmar Mendes, também compareceu. É outro pró-semipresidencialismo.
O Brasil já fez dois plebiscitos para saber se a população apoiava o parlamentarismo. Este apanhou em ambos: teve 16% dos votos em 1963 e 25% em 1993. “Nós ganhamos a eleição, mas não ganhamos o Parlamento”, disse Wagner. Foi uma declaração a propósito do governo Lula, mas que pode ser extrapolada para a esquerda de maneira geral no Brasil.
A divisão partidária no Congresso é o que explica a “aliança ampla” que o atual governo fez, ao dar ministérios a partidos como o PP (comanda o Esporte com o deputado André Fufuca) e o Republicanos (comanda Portos e Aeroportos com o deputado Silvio Costa Filho), apoiadores da reeleição de Bolsonaro em 2022. “É tão ampla quanto a necessidade exige”, disse Wagner.
O que não significa que ao abrir espaço para os neoaliados o governo tenha automaticamente obtido os votos dos parlamentares dessas agremiações. “O borderô das votações a gente tem, para depois chamar para conversar e cobrar (esses partidos)”, afirmou Wagner. Ele coloca na conta da “anomalia do orçamento secreto” a dificuldade de transformar cargos em votos no Congresso.
André Barrocal
Repórter especial de Carta Capital em Brasília