Recentemente veio à tona uma situação histórica de discriminação sofrida pelas mulheres no ingresso à carreira policial militar. Vale lembrar que esse assunto foi por nós tratado em artigo anterior, pois sempre procuramos evidenciar e pautar esse dilema de exclusão. E para que não confundam os conceitos, vale destacar logo de partida que, no caso dos concursos para carreiras policiais militares não se tratava de cotas (que visam corrigir desigualdades históricas e garantir oportunidade de acesso), mas do seu exato contrário, pois eram estabelecidos limites, barreiras ao ingresso, ou seja um limite (máximo) ou teto de vagas destinadas às mulheres que girava entre 10% e 20% na maioria das instituições policiais militares do Brasil.
Em que pese essa postura das instituições nos concursos públicos ir contra a própria Constituição da República Federativa do Brasil, que expressa no inciso I do caput do art. 5º: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;” e ainda existir nela “a proibição de critério de admissão por motivo de sexo”, como versa inciso XXX do caput do art. 7º da supracitada lei.
E essa situação só ganhou notoriedade e repercussão em setembro de 2023, após o ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), conceder o pedido de suspenção do concurso para praças da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) que limitava a 10% o ingresso de mulheres nos quadros da instituição (fruto da Ação Direta de Inconstitucionalidade- ADI 7433). É interessante salientar neste caso específico que os candidatos não tinham sequer ocupado todas as vagas, por não terem obtido a nota mínima; por outro lado existiam muitas candidatas com notas superiores ao limite de corte e que estavam sendo excluídas da continuidade do concurso.
Na sequência deste caso, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou 14 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra leis estaduais que estabelecem percentuais para o ingresso de mulheres na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros por concurso público. E as ações questionam leis dos seguintes estados: Tocantins (ADI 7479), Sergipe (ADI 7480), Santa Catarina (ADI 7481), Roraima (ADI 7482), Rio de Janeiro (ADI 7483), Piauí (ADI 7484), Paraíba (ADI 7485), Pará (ADI 7486), Mato Grosso (ADI 7487), Minas Gerais (ADI 7488), Maranhão (ADI 7489), Goiás (ADI 7490), Ceará (ADI 7491) e Amazonas (ADI 7492).
Com isso, finalmente esse longo processo de exclusão e discriminação foi afetado frontalmente, paralisando desta forma outros concursos que estavam abertos ou em andamento, gerando necessidade de ajustes para correção do teor discriminatório e garantir o acesso universal de ampla concorrência.
Nesta seara é oportuno relembrar que a discriminação ou invisibilidade das mulheres é uma questão sócio-histórico-cultural, que está além das profissões “ditas masculinas”, pois perpassa diversas delas e impacta carreiras no Judiciário, no mundo empresarial, na ciência e até na filosofia, quando poucas mulheres são reconhecidas nos estudos clássicos.
Podem ser encontradas análises sobre o patriarcado, misoginia e discriminação tanto em produções acadêmicas como em outros formatos, por exemplo, produções cinematográficas, tais quais o belo filme “Estrelas além do tempo”. Baseada em fatos reais, essa película narra a história e luta por reconhecimento de três matemáticas afro-americanas na Nasa (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço), ou no divulgado filme Barbie, dirigido por Greta Gerving, que traz a reflexão da personagem sair da Barbielândia, onde há o protagonismo feminino em todas as áreas, e ir para o mundo real; temos ainda o filme sobre Mary Shelley, escritora do clássico Frankenstein, publicado inicialmente sem sua identificação como autora. No campo literário podemos citar também a biografia de Hedy Lammar, mais conhecida por sua beleza como atriz. Trata-se, no entanto, de uma das inventoras do sistema que serviu de base para os telefones celulares e Wi-fi, patenteado em 1942. Mas ela só foi reconhecida por sua invenção em 1997, aos 82 anos. Apenas em 2014 é que Hedy Lammar foi incluída no Hall da National Inventors, 14 anos após sua morte.
Logo, para as mulheres, não basta ser competente. É preciso ir além. Por isso, encontramos um movimento mundial para garantir acesso, direitos, visibilidade e oportunidades em todo mundo e em diversos contextos, da literatura com movimentos como o “leia mulheres” até a luta da ativista paquistanesa Malala Yousafzai pelo direito das mulheres à educação.
Retomando o universo militar, lembramos de histórias que passam a ser contadas agora pelas mulheres, como no livro “A guerra não tem rosto de mulher” da escritora Svetlana Aleksiétich (prêmio Nobel de literatura 2015), que retrata a atuação de quase um milhão de mulheres que lutou na Segunda Guerra Mundial.
Sobre as carreiras militares, foi noticiado que, em dezembro de 2023, um grupo de mulheres concluiu o Curso de Aspirante a Oficial na Academia da Força Aérea e, conforme fala do Comandante da Aeronáutica, esse foi um marco para o Ninho das Águias. “Saibam que vocês deixaram algumas marcas indeléveis na história da AFA: congratulo as primeiras mulheres que estão se formando e começaram suas jornadas pioneiramente, ainda na Escola Preparatória de Cadetes do Ar. Afinal, sabemos o quanto foi difícil nestes últimos sete longos anos até este grande momento”, disse .
No caso das policiais militares brasileiras, o caminho para corrigir essa injustiça histórica foi a judicialização para que os princípios constitucionais da igualdade de gênero fossem finalmente respeitados e as mulheres tivessem pura e simplesmente o direito de concorrer, pois havia as vagas da carreira policial e elas tinham notas para aprovação superiores às dos homens.
Ou seja, no Brasil e no mundo ainda há um caminho a percorrer para se alcançar o 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) apresentado pela Agenda 2030. É estipulado como meta o alcance da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas. Destacando que a Agenda 2030 reafirma princípios contidos nas principais normas internacionais relativas aos direitos humanos das mulheres, tais como a Convenção para Eliminar Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Plataforma de Ação de Pequim. Além destas, destaca-se no tema uma série de Convenções adotadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que definem as normas internacionais mínimas do trabalho; o Plano de Ação de Cairo, adotado na Conferência Mundial de População e Desenvolvimento; e a própria Declaração Universal de Direitos Humanos.
Que aprimoremos o olhar para identificar os níveis da discriminação e preconceitos contra as mulheres e lutemos contra o apagamento histórico e bloqueios ainda atuais, em um movimento amplo pela garantia de direitos e de fazer parte de forma imprescindível de todos os espaços profissionais e sociais. Que a frase “lugar de mulher é onde ela quiser” não seja retórica, mas uma realidade.
Romper barreiras, abrir caminhos e construir novas realidades neste processo em que nada está dado e sim tudo é conquistado com competência, esforço e luta em várias frentes. Como nos lembra Rebecca Solnit, o caso do Women Strike for Peace, movimento fundado por mulheres que estavam cansadas de fazer café e datilografar e não ter voz ativa ou papel decisório no movimento antinuclear americano nos anos 1950, e lutaram primeiro na frente de poder falar e depois de serem reconhecidas pelo seu valor, como ser humano.
CRISTIANE DO SOCORRO LOUREIRO LIMA - Doutora em Ciências Sociais pela UFRN, Oficial RR da PM/PA e associada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
fontesegura.org.br/ | EDIÇÃO N.218