Foram estas palavras que ecoaram no Sambódromo do Anhembi em São Paulo. A escola de samba Vai-Vai prestou homenagem ao movimento do Hip Hop, que marcou a história com atos de resistência da arte popular. Não é segredo o papel do Carnaval em representar criticamente a realidade social. Seus versos, seu ritmo, seu público representado nas mais diferentes alas e suas fantasias são instrumentos de comunicação cultural para o Brasil inteiro. No desfile, a Vai-Vai tocou na ferida aberta brasileira, a violência policial.
Com asas e chifres vermelhos, homens fardados de cinza, como policiais, tiveram os holofotes do Sambódromo, causando comoções da classe profissional e do próprio governador de São Paulo. Em uma entrevista publicada pelo jornal O Globo, Tarcísio disse: “se eu fosse jurado, eu daria nota zero no quesito fantasia. Achei de péssimo gosto. A polícia é uma instituição que a gente tem que ter respeito”. A Sindesp (Sindicato dos Delegados de Polícia de São Paulo) também demonstrou incômodo com a representação da polícia pela escola de samba, afirmando que “demonizaram a polícia”.
Em resposta às críticas direcionadas à escola de samba, a Vai-Vai emitiu nota de esclarecimento ressaltando que a escola não promoveu nenhum ataque à polícia. Em parte do texto apresentaram a seguinte argumentação:
“Vale ressaltar que, neste recorte histórico da década de 90, a segurança pública no estado de São Paulo era uma questão importante e latente, com índices altíssimos de mortalidade da população preta e periférica. Além disso, é de conhecimento público que os precursores do movimento hip hop no Brasil eram marginalizados e tratados como vagabundos, sofrendo repressão e sendo presos, muitas vezes, apenas por dançarem e adotarem um estilo de vestimenta considerado inadequado para a época. O que a escola fez, na avenida, foi inserir o álbum e os acontecimentos históricos no contexto que eles ocorreram, no enredo do desfile”.
A digressão histórica ressaltada na nota evidencia que a violência policial não é um fenômeno recente. Se formos mais a fundo, podemos notar que a violência policial e suas arbitrariedades em São Paulo são apontadas e documentadas em veículos públicos de comunicação (jornais, revistas, boletins, telejornais e rádio) desde o século XIX.
De acordo com o historiador e cientista político Boris Fausto (1984), em sua pesquisa sobre crime e criminalidade na cidade de São Paulo, entre 1880 e 1924, existem denúncias públicas em veículos jornalísticos (p.ex. Diário Popular; O Estado de S. Paulo; A Platéia; A Nação; O Combate) sobre “prisões arbitrárias, violências físicas ao se efetuar uma prisão, invasão ilegal de domicílio” (p. 162). Esses documentos revelam que a arbitrariedade e a violência podem não ser casualidades, mas uma prática cultural transmitida sistematicamente ao longo dos anos.
Somente no primeiro bimestre de 2024, o Gaesp (Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial) apontou um aumento de 94% no número de mortes pela PM no estado de São Paulo. A Operação Verão, na Baixada Santista, também motivada pela morte de um agente policial, parece ter um papel relevante no aumento desses números. Apenas no período de 3 a 15 de março, 47 mortes por PMs foram contabilizadas na Baixada Santista, de acordo com o portal G1. A resposta do governador a respeito da crescente letalidade policial na Baixada Santista foi: “E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí” (G1, 2024). A fala do governador, apesar de irresponsável, pode representar parte da opinião popular que é ensinada a legitimar a violência institucional.
O efeito do discurso da criminalidade estabelece uma relação falsa da realidade, como se fosse separada entre o “cidadão de bem” e o “criminoso”. O criminoso se torna “o outro a ser combatido”, do qual é retirada a possibilidade de ser visto a partir da sua humanidade e do seu contexto social. O agente policial também é destituído da sua humanidade quando lhe é colocado o papel de “Herói” e ignoram-se os efeitos da militarização ostensiva, ignora-se a cultura racista institucional ou a condição precarizada de saúde mental na qual os policiais são obrigados a viver, e que influenciam na taxa de suicídio da classe profissional.
Dessa forma, temos um conjunto populacional enorme que vive como se tivessem alvos nas costas. A cultura de violência institucional e a maneira de lidar com o fenômeno da criminalidade têm matado a população e a classe policial. Não se trata de demônios ou de heróis, mas como aprender com a história e organizar coletivamente o fim do ciclo de vingança e violência.
https://www.mpsp.mp.br/gaesp Fausto, B (1984). Crime e cotidiano: a criminalidade em sao paulo (1880-1924)
ANDRÉ MARTINS - Psicólogo, mestrando em Psicologia Experimental na USP e pesquisador do LabGEPEN.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO N.223