O que se pode denotar é uma complexa artimanha envolvendo setores civis e militares em torno de um único propósito: dar um golpe, em fins de 2022, com feições legalistas — utilizando-se ora interpretações nefastas do artigo 142 da Constituição Federal, ora instrumentos de estado de sítio ou estado de defesa — para justificar e legitimar a tomada do poder pela força e para impedir a assunção ao poder do presidente legitimamente sagrado pelas urnas.
Como tenho dito, seja em debates, seja em discussões, seja em artigos, com todos os seus problemas, não houve golpe no Brasil devido a um ator político de grande relevância naquele momento: o Exército Brasileiro.
Há pouco mais de 40 anos, tive uma disciplina, na Academia do Barro Branco, denominada Controle de Distúrbios Civis. O instrutor, uma figura muito carismática, havia participado de inúmeras ações para conter greves e manifestações no ABC, região metropolitana de São Paulo, onde ele trabalhara. Certa feita, perguntei a ele: como um pelotão com 24 homens, mais um tenente, conseguia dissuadir multidões com 4 ou 5 mil pessoas? Ao que ele me respondeu, em outras palavras, com dois aspectos: morremos uns pelos outros e temos armas para impor a ordem (que eram, naquela época, o cassetete, o gás lacrimogênio, as granadas de efeito moral e o lançador de rojões).
Fico a imaginar se o comandante do Exército não tivesse tido a coragem moral de repugnar a tentativa de golpe de Bolsonaro, o que teria acontecido. A Marinha já havia entregado os pontos e se aliara ao golpismo. A Aeronáutica é minoritária e, muito provavelmente, ou se manteria inerte ou teria tido uma participação inicialmente envergonhada mas depois aderente ao golpe. O Exército, nesse tocante, é a força mais robusta em termos de efetivo e material bélico para levar à frente o golpe. Como ainda há uma ligação muito forte entre as Polícias Militares e o Exército, seja em termos constitucionais, legais e, em algum sentido, operacionais; políticos e, por que não dizer, ideológicos, haveria uma adesão voluntariosa ao movimento golpista. Como a sociedade estava — e ainda está — cindida, creio que, muito provavelmente, o êxito do plano estaria consumado. Quando há uma metade que se contrapõe à outra, aquela que dispõe de armas provavelmente será a vencedora. Seria a tragédia perfeita.
Ocorre que, como agora constatamos pelos depoimentos, não foi isso que sucedeu. Há dois grandes heróis nessa história: general Marco Antônio Freire Gomes, do Exército, e brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, da Aeronáutica. Eles se negaram a fazer parte das articulações políticas do submundo e se sublevaram, no sentido mais nobre do termo, aos rompantes golpistas.
O general Freire Gomes chegou a ameaçar de prisão o presidente golpista. Conforme as declarações de Baptista Junior, depois “de o presidente da República Jair Bolsonaro aventar a hipótese de atentar contra o regime democrático por meio de alguns institutos previstos da Constituição (GLO ou Estado de Defesa ou Estado de Sítio), o então comandante do Exército, general Freire Gomes, afirmou que, caso tentasse tal ato, teria que prender o presidente da República”. Esse é o ápice, a conclusão e a consumação de um processo doloroso que se iniciara quatro anos antes. Houve a transição de governo e o eleito assumiu o poder. Não é pouca coisa para um país convulsionado.
Pois bem, resta a pergunta: o que fazer agora?
Alguns entendem que é o momento de “distensionamento”, de “compatibilização”, de “apaziguamento”.
Pois eu respondo: ESTÃO ERRADOS!
É a hora e o momento de aplicar a lei, sem subterfúgios. Estamos num daqueles momentos divisórios da história do Brasil. E ele não pode ser desperdiçado, sob pena de, em 30 anos, vermos novamente o que estamos assistindo agora. Dou três exemplos acerca do momento histórico por que passa a sociedade brasileira, para contextualizar.
No final dos anos 80, e por quase todos os 90, um grande debate interno da Polícia Militar era sua subordinação ao secretário da Segurança Pública. Coronéis, que hoje são octogenários e nonagenários, que viveram suas carreiras sob o regime militar, não admitiam tal postura e, de certa maneira, instigavam os coronéis mais jovens, que estavam na ativa, a se insurgirem contra essa situação. Para eles, um coronel de Polícia Militar só poderia se ligar à mais alta autoridade do Estado, o governador empossado.
Pois bem, essa fase passou, a situação se acomodou, e, atualmente, temos coronéis que, pela prática de crimes, quaisquer que sejam eles, estão presos no Presídio Militar Romão Gomes ou em presídios do sistema carcerário. Este é um exemplo de como a democracia, paulatinamente, com muita dificuldade, se amolda em sociedades com perfil altamente autoritário.
Há dois exemplos de momentos históricos que são divisórios para o país. O primeiro é o Plano Real, quando a inflação assolava o país e destruía as classes médias e pobres. Quando veio o engenhoso Plano Real, parcela do PT, e seu “economista chefe”, digamos assim, Aloizio Mercadante, postaram-se radicalmente contra o projeto econômico. A história é conhecida por todos. O plano foi um sucesso, estancou a inflação e permitiu às classes médias e pobres (inclusive eu) não perder seus salários para a corrosão de valor e poder ter uma qualidade de vida minimante aceitável.
Outro exemplo é a reforma tributária. Ouço falar dela desde 1993, quando cheguei a Brasília para um período de trabalho na capital federal. Foram três décadas em discussão de projetos e propostas. Ela saiu — pelas mãos do ministro Fernando Haddad, meu professor no Departamento de Ciência Política da USP — e, muito provavelmente, será um divisor de águas na história econômica do Brasil, criando condições e oportunidades para um país mais estável, equilibrado, justo socialmente (com a reforma do IR), e desenvolvido.
São momentos únicos e ímpares na história de um país.
Pois bem, é nesse diapasão que vejo o momento atual. Não podemos nutrir vingança. Não podemos desejar a retribuição do mal perpetrado. Não podemos agir ao arrepio da lei. Não podemos infringir garantias constitucionais. Mas as normas do Estado Democrático de Direito têm que prevalecer.
Termino lembrando as doces palavras do general Braga Netto. Em uma conversa privada, ele chamava o general Freire Gomes de “cagão”. Chegam a ser surreais palavras desse naipe numa conversa entre oficiais de alta patente do Exército (igualmente vimos conversas constrangedoras de procuradoras acerca da imagem da ministra Carmen Lúcia, recentemente).
Aquele que cumpre a lei não pode ser tido como “cagão”. Aquele que nutre apreço pelas liberdades civis não pode ser alcunhado por “cagão”. Aquele que respeita preceitos constitucionais de transitoriedade do poder não pode ser apelidado por “cagão”. Aquele que demonstra sua absoluta compatibilidade pelos preceitos democráticos, com todas as falhas e problemas que a democracia evidencia —mas, deve-se ressaltar, não surgiu nada melhor em termos políticos para substituí-la—, não faz jus à acusação de “cagão”.
É um tributo a todos aqueles que se fiaram pelo estrito cumprimento da lei que os “corajosos golpistas” sofram a devida persecução criminal e respondam pelos seus atos. Dentro das normas do Estado de Direito, para que eles entendam, e os demais, a importância do direito, da lei, de suas garantias e de como as pessoas devem viver em mundo civilizado, não pela força arbitrária, mas pela força da lei.
Se, no devido processo, como parece brotar agora, houver culpabilidade de Bolsonaro, de general Heleno, de general Braga Netto, de almirante Garnier, que sejam apenados e cumpram suas penas, sejam quais forem elas, em presídios designados para tal. Não em quarteis, com as regalias que lhes serão oferecidas.
Este é o momento que pode mudar uma cultura de 500 anos de golpes e contragolpes, de arbitrariedades, de privilégios para determinados segmentos da sociedade, de vantagens para certas camadas, de desapreço pela lei e pela democracia.
Entre um e outro, se ainda não desconfiaram, eu me perfilo ao lado dos democratas “cagões-legalistas”.
EM TEMPO: no momento em que encaminho este artigo para publicação, leio, pela imprensa, as declarações do presidente Lula (18/03/24). Numa reunião com seus ministros, para tratar de assuntos políticos e administrativos do governo federal, ele chama Bolsonaro de “covarde”, por não ter levado adiante seu desiderato de golpe. Conquanto possamos pensar livremente, em público, temos que adotar certas cautelas. Especialmente um presidente da República. Com isso, ele demonstra ainda se preocupar demasiadamente com o ex-presidente, além de, a contrario sensu, incentivar, aos “corajosos” que, se for para valer, que perpetuem o golpe. Esses serão os corajosos. Tais declarações em nada contribuem para melhorar o ambiente político do Brasil, além de acirrar ainda mais os ânimos.
GLAUCO SILVA DE CARVALHO - Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo.
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