Este texto é um extrato dos principais apontamentos do artigo intitulado “A pedagogia do sofrimento em um acampamento bombeiro militar[1]”, de minha autoria, lançado no volume 16, de 2022, edição especial da Revista Brasileira de Segurança Pública, que teve como dossiê a formação dos profissionais de Segurança Pública no Brasil.
Entre as tradições militares copiadas do Exército pelas Polícias e Bombeiros Militares em suas formações profissionais, temos o acampamento militar. Esse expediente pedagógico próprio da educação e cultura militares consiste em situações nas quais as aulas formais são suspensas para que os alunos permaneçam em curtos períodos de tensão física e psicológica extremas, sob a tutela de uma coordenação pedagógica, para que seja testada a capacidade de resistência deles à obediência à autoridade e aos limites impostos ao corpo e à mente. São testes de sobrevivência que têm origem nas Forças Armadas. Simulam atividades bélicas para que os alunos tenham uma noção do que pode ocorrer em uma guerra real, na qual os recursos ficarão escassos e o trabalho em equipe será fundamental para que todos sobrevivam. Geralmente esses testes de sobrevivência ocorrem em regiões de mata fechada, próximas a rios ou represas, para que os alunos, trabalhando em equipe, aprendam formas de obter recursos naturais para sobreviver.
Foi uma dessas experiências de um acampamento militar com alunos bombeiros que analisei a partir dos relatos dos próprios alunos, que forneceram cópias de seus depoimentos em uma sindicância na qual foram testemunhas dos excessos praticados pelos oficiais que estavam à frente do treinamento. Os fatos ocorreram em 2019, durante um acampamento com alunos do Curso de Formação de Oficiais (CFO) para bombeiros militares na Paraíba.
Entre as atividades realizadas no acampamento, uma das que mais incomodaram os cadetes foi a refeição na hora do almoço, cujos relatos atestam que: “no primeiro dia, foi disponibilizado algum tempo para o almoço, o qual estava em quentinhas, e após encerrar o tempo o que restou da comida foi reunida em uma panela; tiveram que comer toda a comida e enquanto comiam realizavam flexões, intercalando com período que tinham (sic) para terminar de comer, até toda comida acabar; não tinham condições adequadas de higiene na hora do almoço”.
O trecho destacado dos depoimentos sobre a hora do almoço no acampamento revela o descuido proposital por parte dos coordenadores com a falta de higiene para o manuseio da comida, aliada ao desconforto e às atividades físicas empregadas, como as flexões de braço que, em alternância com momentos da alimentação, passou a apresentar “uma quantidade de areia”. Percebe-se no evento a tentativa dos coordenadores de fazer com que os alunos tenham certa destreza para saber lidar com o tempo e a forma de se alimentar própria de um evento bélico, no qual não há espaço para noções de higiene, porque é a sobrevivência que importa.
Entre outros fatos, o clímax do acampamento ocorreu diante de uma situação inusitada. Devido ao acampamento ter sido organizado pelos coordenadores para ser uma surpresa e por conta do pouco tempo dado para os cadetes pegarem algum material necessário, nem todos os homens levaram lâminas de barbear ou barbeador para o acampamento, visto ser regulamentado o não uso de barba pelos homens, de acordo com as regras militares. Esse fato foi o que obteve maior destaque nos depoimentos, pois, diante da evidência de que não tinham lâminas nem barbeadores suficientes para todos e da recusa dos alunos em compartilhar os que tinham disponíveis, ainda assim, “os termos adotados (em tom ríspido) por parte de ambos os oficiais (major e tenente) era que a imposição de se fazer a barba era uma ordem” (depoimento); “em face da postura da turma em não cumprir a determinação de fazer a barba, que imputaria necessariamente em compartilhar os barbeadores, veio uma série de atividades punitivas à turma que tinham como objetivo principal mudar a postura dos alunos” (depoimento).
A obediência à autoridade é o requisito implícito, não diretamente divulgado pelos coordenadores em situações como de um acampamento militar. Diante da ordem imposta, os cadetes, resignados, cumpriram a missão e compartilharam os barbeadores. O argumento dos coordenadores, como sempre centrado nas regras militares, previa que “diante da decisão de não cumprimento da determinação, a coordenação teve a percepção daquela atitude como sendo um motim (tipo de crime militar)” (depoimento). Mesmo pedindo desculpas à turma, após o término do acampamento, pelo ocorrido na situação do uso coletivo dos barbeadores, ainda assim o tenente teria afirmado, com base em sua experiência pretérita no Exército, que “a situação não era absurdo, pois em momentos vivenciados anteriormente no Exército brasileiro já chegou a compartilhar um barbeador com 10 militares” (depoimento). No entanto, era do conhecimento dos alunos à época do acampamento que existia um oficial da corporação que era soropositivo.
Após a publicação do artigo por mim escrito, houve a solução da sindicância, a partir da qual analisei os fatos colhidos nos depoimentos dos alunos. Naquela solução, o procedimento administrativo foi arquivado por não terem sidos identificados “indícios de infrações de qualquer natureza” por parte dos oficiais, pois “os cadetes do primeiro ano do CFO estavam em fase de transição da vida civil para militar. O acampamento militar é uma instrução de caráter extraordinário, a qual faz parte da formação dos futuros oficiais e ocorre em todas as turmas formadas na Academia”. Além disso, o oficial responsável pela Sindicância constata que “a formação escolar dos militares se toma primordial, devendo levar os alunos a situações de rusticidade que se assemelham à realidade a qual irão vivenciar após a formação”.
Tais condições de violência institucional no mundo militar são geralmente alimentadas pelo desejo por autoridade e pela incipiente concepção da aprendizagem pelo sofrimento, a qual se mostra vazia de conteúdo. Ao contrário, talvez os Bombeiros Militares consigam reverter tal quadro pedagógico se descobrirem o caminho da resolução de conflitos humanos a partir da criatividade e do senso de justiça e empatia desde a formação de seus futuros profissionais, legitimando uma proposição mais coerente ao lema dos bombeiros de ‘vida alheia e riquezas salvar’.
[1] A versão integral do artigo, publicada no Dossiê “A formação dos profissionais de segurança pública”, encontra-se disponível no link: https://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/view/1438.
FÁBIO GOMES DE FRANÇA - Pós-Doutor em Direitos Humanos, Doutor e Mestre em Sociologia pela UFPB. Capitão da PMPB.
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