A cooptação e radicalização das polícias e das Forças Armadas brasileiras, um dos fatores responsáveis pela chancela e conivência das forças de segurança aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, são faces do acirramento das posições autoritárias na sociedade contemporânea. O impacto do avanço dessas posições também se expressa na composição do Congresso Nacional, no qual observamos a formação de bancadas em torno da temática da segurança que restringem as políticas públicas do campo à atividade policial e apostam no endurecimento penal como resposta aos problemas do crime e da violência. Nesse sentido, a 37ª edição da Revista Brasileira de Segurança Pública, lançada em fevereiro, traz a público artigos que analisam a articulação e a instrumentalização política da pauta “segurança pública” como meio de impulsionamento de ideias autoritárias e conservadoras no Poder Legislativo brasileiro.
Em “Autoritarismo e segurança pública: como a desobediência policial militar desestabiliza a democracia”, Emanuel de Melo Ferreira defende que alguns movimentos grevistas de policiais e bombeiros militares têm sido canalizados para a “obtenção de ativos eleitorais por parte dos líderes de tais manifestações, que acabam eleitos para o Congresso Nacional, alimentando um círculo vicioso capaz de desestabilizar a democracia brasileira com a aprovação de leis de anistia”. Por meio da análise das ações penais ajuizadas contra as polícias da Bahia, do Ceará e do Espírito Santo pelo MPF e MPE dessas localidades, o artigo estuda três “revoltas policiais” ocorridas no país desde 2012, concentrando-se na investigação da transição das pautas remuneratórias originais em práticas autoritárias que, segundo o autor, desestabilizam a democracia brasileira, apostando no “aumento da criminalidade como instrumento para capitalização política” das lideranças desses movimentos.
Ferreira descreve os atos de sabotagem, deserção, ordens para fechamento de comércio, descumprimento de ordens judiciais, uso de familiares para isolar os locais de manifestação e ocupação das respectivas Assembleias Legislativas e conclui que, como consequência desses movimentos, 1) o cometimento de crimes no período se acentuou, 2) a União teve relevantes prejuízos para o custeio das ações das Forças Armadas em Operações de GLO e 3) suas lideranças se projetaram politicamente – muitas delas elegendo-se para cargos no legislativo municipal, estadual e federal.
Aprofundando especificamente a análise sobre a última consequência, o autor questiona “como os policiais eleitos após tais manifestações comportaram-se” e pondera que, apesar da legislação eleitoral não vedar a eleição dessas lideranças nesse contexto, sua atuação legislativa se empenha em “desenvolver políticas públicas também em confronto com a Constituição”, ou seja, “o problema não é a politização, mas sim a politização autoritária do tema da segurança pública”, que cria um “círculo vicioso de erosão democrática”, sobretudo com a aprovação de leis de anistia para movimentos inconstitucionais, como a Lei 13.293/2016.
Analogamente, em “Conservadorismo e políticas públicas: um estudo sobre a área de segurança pública entre Rousseff e Bolsonaro”, Lilian Lages Lino e Cristiano Parra Duarte, com base na comparação entre as Propostas de Emendas à Constituição (PECs) apresentadas nos primeiros anos dos governos de Jair Bolsonaro e de Dilma Rousseff (segundo mandato), discutem as prioridades no campo da segurança pública no país e como são impactadas pelo “avanço do conservadorismo” na política nacional. Examinando o teor das PECs em torno de oito categorias temáticas (financiamento, arranjo organizacional e instituições, federalismo, crimes organizados e milícias, sistema prisional, criminalidade juvenil, perícia e exames, feminicídio), o estudo conclui que “a mudança do espectro ideológico no governo parece possibilitar a transformação e o endurecimento do enquadramento temático das PECs”, sob uma lógica “reativa” que salienta o recrudescimento penal.
As pesquisas que embasaram a escrita de ambos os artigos foram realizadas antes dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. No entanto, os trabalhos captam a tendência de polarização e extremismo que se cristalizava no período eleitoral do último ano do mandato de Bolsonaro: a expansão de pautas e mandatos conservadores e autoritários no Congresso Nacional, valendo-se, especificamente, da pauta “segurança pública”. É válido nos perguntarmos se o cenário contemporâneo, com a derrota do mandatário anterior em sua tentativa de reeleição à Presidência da República, também aponta para mudanças nessa tendência no que se refere às propostas relacionadas à segurança pública no Congresso Nacional. A recente aprovação das novas leis orgânicas das polícias brasileiras, apesar dos vetos em pontos importantes por parte do presidente Lula, revelam exemplarmente que, infelizmente, modelos institucionais retrógrados ainda perdurarão por algum tempo na segurança pública brasileira.
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CAUÊ MARTINS - Pesquisador no Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP).
fontesegura.forumseguranca.org.br/EDIÇÃO N.225