No final do mês de março, a revelação dos mentores do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes repercutiu no Brasil e no exterior. Além dos irmãos Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ), e Chiquinho Brazão, então deputado federal pelo União Brasil, estava o delegado Rivaldo Barbosa, que era o chefe da Polícia Civil à época dos homicídios e que ocupava até então o cargo de coordenador de Comunicações e Operações Policiais da instituição.
Antes de assumir a função de chefe de polícia do estado do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa chefiava a Divisão de Homicídios e, ao sair, indicou um delegado de sua confiança para conduzir as investigações de homicídios, entre os quais os crimes do caso Marielle.
Na investigação que resultou nas prisões, conduzida pela Polícia Federal, há referências de que a cúpula da Polícia Civil atuou no planejamento do crime; na obstrução da justiça, ignorando provas e seguindo linhas de investigação equivocadas para atrapalhar a elucidação do caso; e em associação com o crime organizado, participando ativamente da complexa rede criminal que submetia o poder legislativo e órgãos de fiscalização aos interesses da produção imobiliária miliciana.
A manipulação de provas passava necessariamente pelas atividades da perícia oficial do estado. O Sindicato dos Peritos Oficiais do Estado do Rio de Janeiro – SINDPERJ, em nota oficial, denunciou a situação enfrentada pelos órgãos periciais. Dentre os problemas relatados pela perícia do estado está a subordinação. Trata-se do único Órgão de Perícia Oficial do país que não é dirigido por Perito Oficial, e sim por um delegado.
A lotação de peritos na Divisão de Homicídios, diretamente subordinados a delegados, mostrou-se ainda mais nefasta. Os erros apontados no caso Marielle são gritantes. O veículo em que Marielle e Anderson foram mortos foi periciado na noite do crime, ainda no local dos fatos, e ficou 41 dias na Delegacia de Homicídios sem a devida preservação, antes de ser enviado para uma complementação de perícia no Instituto Carlos Éboli. Sem uma preservação desse veículo, diversos pontos podem ter sido comprometidos quando se pensa na análise de vestígios que ajudariam a esclarecer a dinâmica dos fatos.
Outro problema que dificultou a realização de exames periciais completos foi a perda das imagens oficiais feitas pelos legistas dos corpos de Marielle e de Anderson. As fotografias não puderam ser analisadas, sob alegação de um problema ocorrido por defeito no cartão de memória da câmera fotográfica. Tal alegação parece, no mínimo, injustificável. Incompetência ou manipulação? Justo num caso de imensa repercussão, um cartão de memória apresentar defeito? Não se utiliza mais de uma câmera nos exames? Não há backup de imagens? No mínimo, é muito estranho, para sermos cautelosos.
O caso Marielle descortinou importantes mazelas da perícia no estado. Vale citar um relatório do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) produzido em 2020, que já apontava “graves problemas estruturais” do serviço de perícias criminais no Rio. O déficit no corpo funcional de peritos era de quase 50%, e o cenário pode ser ainda muito pior, uma vez que grande parte dos profissionais de perícia já atingiu os critérios para a aposentadoria.
Segundo informações da mídia, haveria, naquele momento, mais de cinco mil celulares à espera de perícia no Rio. Somente em 2023 foram feitas 137 mil solicitações de perícia no estado.
O caso também pode e deve ser encarado como uma grande oportunidade, não apenas de denunciar as reais condições de trabalho da perícia oficial, mas também de implantação de mudanças estruturais e de impacto em médio e longo prazo.
A autonomia dos órgãos de perícia no estado deve ser prioritária. Manifestações de entidades de direitos humanos, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Anistia Internacional, Conselho Nacional de Justiça, Human Rights Watch e a ONU (Protocolo de Minnesota), já manifestaram a importância dessa independência e entendem que ela é um pilar para a consolidação de um sistema de justiça ao proporcionar respeito aos direitos fundamentais e promoção de uma verdadeira justiça.
Vale lembrar um episódio marcante: a condenação do Brasil, em fevereiro de 2017, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por violações de direitos humanos ocorridas na Favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro. A condenação se refere à violação do direito à vida e à integridade pessoal de 26 homens e 3 mulheres durante operações policiais realizadas naquela favela em outubro de 1994. A sentença destacou a falta de investigação adequada e a violação das garantias do devido processo. Determinou, ainda, que os órgãos responsáveis pela perícia criminal se tornassem independentes das polícias.
A janela de oportunidades está aberta. Resta sabermos se vamos conseguir pressionar para que mudanças efetivamente aconteçam. Vontade requer ação!
CÁSSIO THYONE ALMEIDA DE ROSA - Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito criminal aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO N.227