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POR QUE AS POLÍCIAS BRASILEIRAS SE DESTACAM ENTRE AS MAIS LETAIS DA AMÉRICA LATINA?

Em nosso país, o cenário de abuso da força é intensificado pelo fato de não termos, ao término da mais recente ditadura, (re)democratizado de fato a segurança pública, que segue guiada por uma lógica racista, autoritária e beligerante.

04/05/2024 às 19h07 Atualizada em 04/05/2024 às 19h41
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO N.228
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POR QUE AS POLÍCIAS BRASILEIRAS SE DESTACAM ENTRE AS MAIS LETAIS DA AMÉRICA LATINA?

O Monitor de Uso da Força Letal na América Latina [1] é uma iniciativa regional que une esforços de nove países (Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Jamaica, México, Peru, Trinidad e Tobago, e Venezuela) para produzir 12 indicadores padronizados que possibilitam análises comparadas sobre o uso da força policial na região.

Como nem todos os países possuem fontes oficiais de dados acessíveis e confiáveis, a metodologia do Monitor contempla a produção de indicadores tanto a partir de dados coletados junto a fontes oficiais, quanto aqueles coletados a partir da imprensa, gerando um relatório nacional para cada país, bem como um relatório regional sintetizando o estudo em sua totalidade.

Na edição deste ano, os indicadores posicionam o Brasil no extremo dos países em situação mais grave da região, como El Salvador, Colômbia e Venezuela. Único país a apresentar indicadores piores que os brasileiros, a Venezuela vem enfrentando sucessivas e duradouras crises institucionais, demonstrando quão preocupante é o caso do Brasil.

O colonialismo cristalizou na América Latina a posição da violência como lógica privilegiada de organização social e resolução de conflitos em sociedades intensamente estratificadas e hierarquizadas, naturalizando a desumanização de determinados grupos étnicos subalternizados (em especial populações americanas: indígenas, tradicionais e negras [2]), cujo controle pelo uso da força se consolidou historicamente como estratégia desenvolvimentista, que ganhou novos contornos ao longo de colonizações e ditaduras.

No Brasil, essa marca histórica é emblemática: 83,1% das vítimas de mortes decorrentes de intervenções policiais em 2022 eram negras, e a taxa de letalidade policial por 100 mil habitantes de negros era mais de quatro vezes superior à de brancos no período. Em nosso país, o cenário de abuso da força é intensificado pelo fato de não termos, ao término da mais recente ditadura, (re)democratizado de fato a segurança pública, que segue guiada por uma lógica racista, autoritária e beligerante, incompatível com os direitos fundamentais [3], em especial os direitos à vida e à não-discriminação, cuja negação é o cerne do tipo pernicioso de abuso de que resultam os terríveis indicadores revelados pelo Monitor.

Paira sobre a Segurança Pública a percepção de que os núcleos da atividade policial devem ser o combate a inimigos internos e a limpeza social, ainda que a constituição estabeleça a Segurança Pública como setor de promoção de cidadania e salvaguarda de direitos, e que a opinião pública tenha percepções mais nuançadas acerca do tema [4].

Os resultados indicam que somos um país que normalizou polícias extremamente violentas e abusivas. Um policial foi morto para cada 250 civis mortos por policiais no Brasil em 2022. O número, que é o maior da América Latina e o maior já registrado pelo Monitor em toda sua série histórica, iniciada em 2017, mais que dobrou com relação ao observado em 2020, ano em que morreram 114 civis em decorrência de intervenções policiais para cada policial morto. Paralelamente, cerca de 12% do total de mortes violentas intencionais decorreu de intervenções de policiais em serviço usando arma de fogo. Se considerássemos todas as mortes causadas por policiais, o indicador de abuso chegaria a 13,6%. Não é possível falar em proporcionalidade no uso da força nessas circunstâncias.

O relatório destaca, contudo, que algumas polícias são definitivamente mais abusivas que outras. É o caso das polícias do Amapá, Bahia, Goiás, Pará, Rio de Janeiro e Sergipe, que lideram, invariavelmente, todos os indicadores de incidência e abuso do uso da força no país, com diferenças bastante expressivas em relação às outras polícias.

Isso reforça o argumento levantado no 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de que letalidade policial constitui um problema territorialmente concentrado, cuja intervenção depende de políticas públicas focalizadas [5].

Como exemplo, o relatório resgata o sucesso do Programa Olho Vivo, que, implementado em 2019 em São Paulo, focalizando batalhões de alta letalidade da Polícia Militar, reduziu em mais de 76% a letalidade policial em batalhões aderentes ao programa [6], tendo logrado redução também em batalhões que não participaram diretamente do programa, cuja redução foi de 33%.

O desafio de superação da altíssima letalidade policial no país permanece imenso, dado que, na gestão atual, o Programa tem sido descaracterizado, demonstrando que até mesmo uma das experiências mais bem sucedidas de enfrentamento ao abuso da força policial no país, que conta com amplo apoio popular [7], é bastante frágil no país que ocupa o pódio da letalidade de uma das regiões mais violentas do planeta.

Referências:

[1] Os relatórios regionais e nacionais do Monitor estão disponíveis AQUI:

[2] GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana [São Paulo]: Filhos da África, 2018.

[3] PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP, Brasil, n. 9, p. 45-56, mai. 1991.

[4] PACHECO, Dennis; MARQUES, David. A heterogeneidade territorial da letalidade policial no Brasil. In: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível AQUI:

[5]   [6]   [7] 

DENNIS PACHECO - Mestrando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO N.228

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