No ano de 2020, no estado do Ceará, registrou-se um movimento de paralisação de uma pequena fração de militares do estado, ou seja, de membros da Polícia Militar do Ceará (PMCE) e do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE). Tal movimento ocorreu após o fechamento de um acordo salarial do governo estadual com líderes de associações representativas dos profissionais do estado. Um grupo de aproximadamente 200 praças, insatisfeito, concentrou-se em um quartel da PMCE, recusando-se a trabalhar até que suas reivindicações fossem ouvidas e negociadas.
Resolvida a crise com aquele grupo, reacendeu-se uma discussão antiga. Alguns articulistas de jornais e formadores de opinião colocaram em dúvida ou suspeição o modelo de formação, então em funcionamento na Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará (Aesp/CE), responsabilizando a formação inicial dos policiais militares pela referida paralisação e levantando a hipótese dela ser ineficaz para evitar ações do tipo. Iniciou-se, então, uma movimentação para conhecer modelos de outros estados, que pudessem servir de parâmetros, bem como a consulta da opinião de especialistas que pudessem propor um novo modelo de formação para esses profissionais de segurança pública.
Toda essa discussão ocorreu após um período de pouco mais de 10 anos de uma série de profundas mudanças ocorridas no sistema educacional da PMCE e dos outros órgãos de segurança pública do estado do Ceará. Tais modificações se iniciaram no ano de 2008, por meio da Lei nº 14.113, de 12 de maio de 2008, quando os cursos de formação profissional da corporação passaram a ser etapa do concurso para ingresso na instituição e, portanto, com os discentes na condição de civis, quando eram chamados de candidatos. Posteriormente, em fevereiro de 2010, foram extintas as unidades de ensino de todos os órgãos de segurança pública vinculados à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), inclusive da PMCE, e foi criada a Aesp/CE, que passou a operacionalizar a formação inicial no novo modelo, bem como a oferecer formação continuada aos profissionais de segurança pública do estado[1]. Esse modelo permaneceu vigente até 2021, quando houve nova mudança, por meio da Lei nº 17.478, de 17 de maio de 2021, e a formação voltou a se dar com os discentes já na condição de policiais militares. Registre-se, de passagem, que o estado envida esforços contínuos para a melhoria da formação de seus profissionais.
O que chama a atenção, entretanto, é que, após pesquisa documental e bibliográfica realizada por este pesquisador, não foi constatada a existência de qualquer avaliação, pontual ou sistemática, do modelo formativo anterior, que tenha fundamentado as mudanças ocorridas a partir do ano de 2008. Da mesma forma, nas pesquisas efetuadas para subsidiar o estudo que deu origem a este artigo, verificou-se que não há, ainda, uma sistemática de avaliação educacional dos atuais cursos de formação profissional, ainda que exista uma série de trabalhos acadêmicos, inclusive realizados por profissionais de segurança pública, que problematizam os modelos de formação utilizados ao longo da história recente das corporações militares do estado.
A realidade do Ceará ilustra o que ocorre no restante do Brasil. Temos, neste país de magnitude continental, uma diversidade de instituições de formação de profissionais de segurança pública, sejam elas academias isoladas e tradicionais, geridas por cada uma das forças, sejam academias integradas, em que a formação das diversas corporações se dá em um mesmo espaço físico ou sob uma única administração. Sem um trabalho sistemático e padronizado de avaliação, como ocorre, por exemplo, com as universidades, que são avaliadas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), operacionalizado pelo Ministério da Educação (MEC), não conseguimos conhecer as melhores práticas que se dão em cada uma das academias, que poderiam servir de exemplo para as demais.
Ao nosso ver, de maneira geral, a cada ação educacional de formação, inicial ou continuada, em uma instituição pública de ensino de segurança pública, deve ser feita a seguinte pergunta: como obter algum grau de certeza acerca da eficácia do referido curso, ou seja, saber se ele tem atendido aos anseios e demandas da sociedade que, em última instância, é a sua principal beneficiária? Essa pergunta remete ao campo da pesquisa em avaliação educacional que, embora seja uma seara repleta de disputas teóricas, tem por objetivo, de maneira geral, realizar um “raio-x” de uma determinada instituição e compartilhar seus resultados com a sociedade, promovendo aprofundamento de nossa democracia, por meio da participação social.
Nesse sentido, torna-se imperativa a criação ou a adoção de modelos de avaliação dos cursos de formação, inicial e continuada, que sejam adaptáveis à realidade dos diversos estados e municípios da República. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, poderia também atuar nesse campo, a partir da escuta das diversas instituições de ensino de segurança pública do país. Foi a Senasp que, durante pouco mais de uma década, desenvolveu a Matriz Curricular Nacional (MCN) para Ações Formativas dos Profissionais da Área da Segurança Pública, um instrumento apresentado em 2003, que passou por atualizações nos anos de 2005, 2009 e 2014 – esta última a sua versão atual. Na avaliação educacional, porém, não houve avanços, mesmo durante o período em que o órgão foi dividido, com a criação da Secretaria de Gestão e Ensino de Segurança Pública (Segen), por meio do Decreto nº 10.379, de 28 de maio de 2020. As novas leis orgânicas dos militares estaduais e das polícias civis, aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo presidente no ano de 2023, embora tragam diretrizes para a educação desses profissionais, também não tocam no ponto da avaliação.
É preciso, enfim, que sejam elaborados parâmetros para avaliação institucional dos cursos de formação de profissionais de segurança pública, para que se construam, em seguida, quaisquer conclusões sobre eles. Somente após esse conhecimento aprofundado e sistemático, poderemos realizar sugestões efetivas, seja no sentido de conservá-los, seja de alterá-los, corrigindo ou fortalecendo sua estrutura, legislação, pressupostos e métodos. Trata-se de um caminho longo, mas que, se bem trilhado, trará bons resultados às instituições e, consequentemente, à sociedade brasileira.
[1] Este trabalho é inspirado no artigo, de nossa autoria, publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública, intitulado “Avaliação de cursos de formação de policiais militares: um velho desafio para as novas academias integradas de segurança pública”. Disponível AQUI:
[2] Segundo a Lei nº 14.624, de 26 de fevereiro de 2010, a Aesp/CE é “destinada a realizar, direta ou indiretamente mediante convênio ou contrato, a unificação e execução, com exclusividade, das atividades de ensino das instituições que compõem o Sistema de Segurança Pública e Defesa Social do Estado” (CEARÁ, 2010).
ANDERSON DUARTE BARBOZA - Oficial da ativa da Polícia Militar do Ceará. Doutor e Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Professor da Academia Estadual de Segurança Pública do Estado do Ceará (Aesp/CE).
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