O desempenho das funções com viés essencialmente político-partidário, e a realidade que se apresenta em muitas situações nos municípios, nos estados e na União conduz a um despreparo e ineficiência dos órgãos de Proteção e Defesa Civil.
A defesa civil do estado do Rio Grande do Sul certamente está enfrentando seu maior desafio desde que foi criada, em 9 de julho de 1970. Na ocasião, o Estado foi atingido por fortes chuvas que causaram inundações, deixando mais de 7 mil desabrigados na região metropolitana de Porto Alegre. Em sua história passou por diversos acontecimentos, tanto em situação de normalidade como de anormalidade, mas as adversidades ora enfrentadas não têm precedentes.
No ano passado, o RS foi afetado por três grandes eventos climáticos que assolaram algumas regiões do Estado, abarcando mortos, desabrigados e desalojados. Já no mês de maio de 2024, o RS foi novamente atingido por chuvas intensas, mas desta vez em uma magnitude inimaginável, mesmo para os mais pessimistas ou aqueles atentos à prevenção, à preparação e à confecção de Planos de Contingência realistas. Os efeitos desta vez alcançaram proporções avassaladoras, resultando em 2.339.508 pessoas afetadas; 76.188 pessoas desabrigadas (que estão em abrigos públicos ou organizados por voluntários); 581.633 pessoas desalojadas (que estão em casas de familiares, hotéis, residências de lazer (…) que não precisam de abrigos públicos); 806 feridos e 463 municípios afetados, ou seja, 96,15% dos municípios do RS; além de 88 pessoas desaparecidas e 157 óbitos (dados de 20 de maio, conforme boletim emitido pela Coordenadoria de Proteção e Defesa Civil/RS).
A Coordenadoria de Proteção e Defesa Civil (CEPDEC) do RS, com sede na capital gaúcha, é formada por uma estrutura administrativa (Divisão Administrativa, Divisão de Apoio Técnico, Divisão de Assistência às Comunidades Atingidas, Divisão de Convênios e Divisão de Relações Comunitárias) e nove coordenadorias regionais (CREPDECs) distribuídas no território do estado. Cada CREPDEC é composta por um a três militares estaduais (bombeiros militares ou policiais militares, de soldado a coronel) e atendem entre 24 municípios (CREPDEC 6, Uruguaiana) e 76 municípios (CREPDEC 2, Passo Fundo). Cada coordenadoria é responsável, em média, por 55 cidades. Os CREDPDECs atuam (ao menos essa é a intenção) em todas as fases nas quais o Sistema de Proteção de Defesa Civil (PDC) deve, ou deveria, agir: prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação, esta última com relação intrínseca à prevenção, constituindo o ciclo prevencionista. É importante destacar que, para o senso comum, ou mesmo segundo o que é noticiado pelos órgãos de imprensa, tal sistema é lembrado apenas na resposta, no atendimento emergencial aos desastres.
Acompanhando os canais de comunicação e redes sociais, é possível perceber os membros dos sistemas de proteção e defesa civil, desde o Coordenador Estadual até os agentes municipais, envolvendo polícias, bombeiros, membros das Forças Armadas e funcionários públicos, além de inúmeros voluntários atuando diuturnamente neste evento, que já está sendo classificado como uma das maiores – se não a maior – catástrofes socioambientais do Brasil.
Nas narrativas políticas e demagógicas, a prevenção é prioridade. Na prática, infelizmente não. Não é raro ouvir de gestores públicos, nos bastidores, quando assumem a função de Coordenador de PDC: “não sei nada sobre defesa civil, mas conto com a colaboração de todos”. Ou até mesmo: “eu estou aqui pela FG (Função Gratificada, que remunera os que exercem tal cargo). O desempenho das funções com viés essencialmente político-partidário, e a realidade que se apresenta em muitas situações nos municípios, nos estados e na União, conduz a um despreparo e ineficiência dos órgãos de Proteção e Defesa Civil.
Claro que não se pode esquecer, e se deve enaltecer a boa vontade, o desprendimento e a dedicação de todos os agentes de Defesa Civil e das instituições que respondem a tais emergências. A emissão de alertas para a população sobre os eventos climáticos que se avizinhavam, sugerindo, inclusive, a evacuação de áreas de risco sujeitas a inundações; o fomento à construção de Planos de Contingência (municipais e regionais), a sinergia e o firmamento de consórcios intermunicipais, visto que os eventos já não atingem municípios de forma isolada, são exemplos de boas práticas. Mas é pouco diante da realidade que se apresenta e das perspectivas e prognósticos que se vislumbram. Sociólogos contemporâneos afirmam que vivemos em uma sociedade de risco.
O governador do estado, Eduardo Leite, afirmou (como resposta à reclamação quanto à falta de proteção das comunidades quilombolas do Estado) que “o poder público não tem estrutura para atender todas as pontas”, e essa afirmação se encaixa em vários setores da gestão pública. Nesse sentido, voluntários têm se colocado à disposição e atuado junto à Defesa Civil, de forma integrada. São exemplos de abnegação, atuando 24 horas por dia, nos sete dias da semana, desde a publicação de decreto de situação de emergência e de estado de calamidade pública em vários municípios do RS, no dia 4 de maio.
Apesar de o site oficial da Defesa Civil informar que “a Defesa Civil Estadual foi se aprimorando, estando hoje preparada para atuar na gestão de riscos e desastres no estado do Rio Grande do Sul, nas etapas de prevenção, preparação, mitigação e resposta”, o que tem sido demonstrado é que, mesmo com toda a boa vontade de seus membros e representantes, a estrutura da Defesa Civil não estava preparada para um evento dessa magnitude, ficando notória a necessidade de revisão de sua estrutura e de seus protocolos.
Há pouco tempo, cerca de 6 meses aproximadamente, ocasião na qual se discutia internamente o caráter técnico da Proteção e Defesa Civil, da necessidade de uma gestão de riscos e de desastres séria e responsável, um político assim se manifestou: “Defesa Civil não dá voto”. Talvez realmente não dê voto, mas atualmente, na resposta, nas reuniões emergenciais, nas visitas a abrigos, nas entrevistas, muitos gestores públicos estão usando o colete laranja da Defesa Civil. Talvez na esperança de que, a partir de agora, após tragédias que assolam tanto as pessoas pobres como as abastadas, Defesa Civil dê voto.
Certa feita um gestor de proteção e defesa civil vestia uma “jardineira” (equipamento de proteção individual emborrachado e à prova d’água usado para proteger o agente de PDC de intempéries e umidade) como se fosse uma fantasia, sem ter a real noção do objetivo e da situação de emprego daquele equipamento.
Resta a esperança de que situações descabidas descritas neste texto não mais ocorram. Fica a expectativa de que a mobilização social, a união, as parcerias estratégicas e a sinergia demonstrada em prol do RS, suscitadas não só no Brasil, mas no mundo todo, sirvam de modelo e exemplo também para que nossos políticos e gestores públicos se mobilizem, com a preocupação de tornar o sistema de proteção e defesa civil eficiente, eficaz e efetivo, retirando o viés político-partidário, fisiologista e de apadrinhamento, com vistas a priorizar a seriedade, a responsabilidade e o caráter técnico, implementando políticas públicas de gestão de riscos e de desastres que realmente conduzam à salvação de vidas. Que consigamos compreender a real dimensão de “sociedade de risco”, conduzindo a uma avaliação crítica e detalhada da atual estrutura do sistema e da Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil do RS por parte dos detentores do poder, e coloquem em prática a inovação, a transformação e a modernização na gestão pública, tão decantada na retórica política, mas pouco implementada.
REFERÊNCIAS
DAGOBERTO ALBUQUERQUE DA COSTA - Mestrando em Segurança Cidadã-UFRGS, Graduado em Ciências Sociais-UFRGS, Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Tenente Coronel Reformado da Brigada Militar/RS.
EVERTON DE SOUZA DIAS - Mestre em Desenvolvimento - UNIJUÍ, Especialista em Prevenção e Controle de Sinistros - UFRGS, Coronel da Reserva do Corpo de Bombeiros Militar/RS com atuação na Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil do RS.
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