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COMBATE AO RACISMO NA SEGURANÇA PÚBLICA (PARTE I): DEFUNDING THE POLICE E AULAS DE DIREITOS HUMANOS

As organizações policiais poderiam e deveriam contar com orçamento generoso, desde que os gastos partissem de boas práticas de gestão, transparência, participação social, políticas com evidências e com fartos resultados no combate ao racismo na atuação policial.

26/08/2024 às 16h22
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO N.236
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COMBATE AO RACISMO NA SEGURANÇA PÚBLICA (PARTE I): DEFUNDING THE POLICE E AULAS DE DIREITOS HUMANOS

Os casos emblemáticos de racismo na segurança pública costumam resultar em movimentos sociais inflamados, políticos populistas com a agenda cheia fazendo declarações contra (ou amenizando) a questão racial e, no campo de políticas públicas, nada. Enquanto isso, as publicações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre o racismo na segurança pública seguem, ano a ano, oferecendo um cenário no qual nada melhora para pessoas negras: 71% das pessoas mortas e 56% dos policiais mortos são negros, mesmo sendo a minoria nas organizações policiais1,2; 76,2% das pessoas mortas, 62,7% dos policiais mortos e 61,6% das vítimas de feminicídio3; homicídio de pessoas brancas caíram 26,5% e de pessoas negras cresceu 7,5% no mesmo período4; 76,9% das pessoas assassinadas, 67,3% dos policiais mortos, 56,8% das vítimas de estupro e 85,1% dos adolescentes mortos eram negros5.

Passada a fase de haver qualquer dúvida sobre o perigo de ser uma pessoa negra no Brasil, o que temos para debater? Antes de pensar em políticas públicas para o assunto, precisamos remover os obstáculos mais frequentes nesse debate.

O primeiro viés mais frequente é a influência dos movimentos negros estadunidense nos seus pares brasileiros. Já relatamos como o racismo nos EUA e no Brasil possuem mais convergências que divergências, tanto em sua história como na atualidade6 ; porém, algumas propostas de lá não possuem a mais remota aplicabilidade aqui. Uma das que mais se destacam é a redução do orçamento da organização policial local (em regra, municipal), ou Defunding The Police. Surgiu a partir das revoltas contra as forças policiais como consequência de uma morte decorrente de intervenção policial que vitimou um cidadão estadunidense chamado George Floyd.

Esse pleito de retirar ou reduzir fundos da polícia como forma de punir organizações policiais que não coíbem ou desestimulam práticas racistas pelos seus integrantes na realidade estadunidense não é tão absurda quanto parece, num primeiro momento: o contrato de trabalho naquelas organizações policiais, num paralelo com o Brasil, é muito mais precário do que aqui. Qualquer corte orçamentário é motivo para demitir policiais, sem nenhuma garantia de que serão reintegrados no caso de o orçamento voltar a subir. Toda a disciplina jurídica brasileira com o orçamento público praticamente não possui paralelo na legislação estadunidense.

Ainda assim, mesmo lá essa ideia é mais panfletária do que prática. Existem no mínimo quatro interpretações do que seria a punição Defunding The Police: cortar os recursos para as organizações policiais serem extintas; realocar parte do orçamento das polícias para pastas que afetam mais a desigualdade social, como educação; cortar gastos como decorrência da análise de efetividade das ações da polícia e cortar gastos por mero fiscalismo7. Exceto pelo fiscalismo, que grassa com um vigor que não deveria haver no Brasil, as demais medidas podem ser consideradas como impossíveis ou de difícil aplicação. Sendo sucinto, as polícias brasileiras já trabalham com parte de seus orçamentos engessados, como custeio, especialmente a folha de pagamento e pagamento de contratos anteriores, e pouca margem de investimento (compra/contratação nova).

Outra iniciativa, com paralelos semelhantes no Brasil, é o que vamos denominar letramento racial nas polícias. Começando pelo fim: nos moldes aplicados, lá como cá, é mera perda de tempo e recursos sem efetividade alguma.

No caso dos EUA, como consequência dos eventos racistas de autoria policial, como a morte de George Floyd, além do defunding, os movimentos negros procuraram pressionar as organizações policiais para que, de forma preventiva, os policiais recebessem treinamento sobre diversidade, questões raciais e afins, na esperança de que isso reduzisse a quantidade de ocorrências racistas decorrentes da atuação policial. Um estudo recente, para o qual foram avaliados mais de 250 treinamentos que tiveram mais de 3 mil policiais como alunos, apresentou como resultado que tais atividades afetaram os policiais por pouco tempo8  ; ou seja, não funcionam.

Algo bem parecido ocorre no Brasil, mas não necessariamente com base na questão racial: aulas de Direitos Humanos nas instituições policiais para, segundo os movimentos sociais e negros, reduzir a violência policial contra pessoas negras. No nosso caso, Alberto Kopittke, pesquisador e associado do Fórum, economiza o nosso tempo quando reúne e nos mostra as evidências que demonstram que treinamento contra racismo policial não funciona9. Simples, objetivo e com embasamento.

Devemos ressaltar que, em hipótese alguma, estamos defendendo que as organizações policiais tenham um orçamento generoso. Ele pode e deveria ser generoso, desde que os gastos partam de boas práticas de gestão, transparência, participação social, políticas com evidências e com fartos resultados no combate ao racismo na atuação policial. O mesmo raciocínio vale para as aulas de Direitos Humanos nas instituições policiais: não devem ser reduzidas, mas podem ser melhoradas e não podem ser iniciativas isoladas dentro das organizações policiais.

1. FBSP. Um retrato da violência contra negros e negras no Brasil (infográfico). (2017).

2. FBSP. A violência contra negros e negras no Brasil (infográfico). (2019).

3. FBSP. A violência contra pessoas negras no Brasil: 2021 (infográfico). 

4. FBSP. A violência contra pessoas negras no Brasil: 2022 (infográfico).

5. FBSP. A violência contra pessoa negras no Brasil: 2023 (infográfico). 

6. Lima-e-Rocha, L. J., Oliveira, D. W. S. E. de & Silveira, A. B. da. Racismo organizacional na segurança pública estadunidense: uma análise interlocutória com o Brasil. Rev. LEX Criminol. Vitimologia 5, 103–120 (2022).

7. Eaglin, J. M. To “Defund” the Police. Stanford Law Rev. Online 73, 120–140 (2021).

8. Lai, C. K. & Lisnek, J. A. The Impact of Implicit-Bias-Oriented Diversity Training on Police Officers’ Beliefs, Motivations, and Actions. Psychol. Sci. 34, 424–434 (2023).

9. Kopittke, A. Manual de segurança pública baseada em evidências: o que funciona e o que não funciona na prevenção da violência. (Conhecer, 2023).

LÍVIO ROCHA - Investigador da Polícia Civil do Estado de São Paulo desde 1999. Mestre em Gestão e Políticas Públicas (FGV) e doutorando em Políticas Públicas (UFABC). Pesquisador no Grupo de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (Mackenzie). Membro e Conselheiro Fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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