No artigo “Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios”, João Pacheco de Oliveira (2014) nos instiga com uma reflexão profunda sobre o conceito pacificação. Trata-se de um eufemismo para as guerras e confrontos étnicos, que deu base ao estabelecimento do regime de tutela indígena, e que no século XXI reapareceu por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), em territórios urbanos do Rio de Janeiro. O objetivo do Estado, neste novo contexto, era o de pacificar territórios onde atuam grupos — as chamadas “facções” — nascidos no sistema penitenciário, que se estabelecem a partir da dominação armada e de mecanismos de governança nas periferias das cidades.
Por ironia do destino, na mesma época em que o artigo foi publicado, os primeiros membros das “facções do Sudeste” surgiam nas regiões mais remotas da Amazônia, incluindo o Alto Solimões, região do clássico estudo de Pacheco de Oliveira, intitulado O nosso governo: os Ticuna e o regime tutelar, de 1988. Conforme apuramos nos trabalhos de campo que embasaram o relatório Cartografias da Violência na Amazônia (2023), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a infiltração desses grupos ocorreu tanto nas periferias e prisões das capitais amazônicas quanto em povoados rurais, Quilombos e Terras Indígenas (TIs), alcançando até mesmo áreas de difícil acesso, como a TI Yanomami. A situação é grave, incluindo relatos que envolvem indígenas que cometeram delitos, foram aprisionados (ver Stephen Baines) e retornaram às suas comunidades associados às facções. Mais alarmante ainda é constatar que elementos do universo simbólico dessas “irmandades” já estão presentes no imaginário de parte da juventude indígena; do mesmo modo, membros dessas, facções infiltram-se nas TIs por meio das frentes de garimpagem estabelecendo formas ainda mais violentas de dominação territorial.
Diante desse quadro, a complexa situação da segurança pública na região amazônica exige diversos esforços para, ao menos, tentar conter o avanço desse processo iniciado nos últimos anos, com potencial suficiente para ameaçar a sobrevivência de comunidades indígenas inteiras e, com isso, acelerar o processo de possível colapso ambiental na Amazônia, algo previsto por cientistas, em artigo da revista Nature, para 2050.
Para tratarmos do assunto, elencamos duas ponderações iniciais que devem ser destacadas:
Importância estratégica das TIs: segundo o relatório da ONU intitulado State of the World’s Indigenous People, as comunidades indígenas, que representam apenas 5% da população mundial, desempenham papel crucial na preservação de 80% da biodiversidade. O MapBiomas, por sua vez, confirma que, mesmo enfrentando violações criminais as mais variadas, as Terras Indígenas foram as áreas mais preservadas do Brasil entre 1985 e 2022.
Desafio das “Facções do Sudeste”: o preocupante avanço de irmandades criminais (ver Camila Dias, Gabriel Feltran, Karina Biondi) em Terras Indígenas, Quilombolas e seus arredores demanda uma abordagem complexa e urgente. Reconhecemos que tais redes se articulam nos territórios e operam sob uma lógica global (ver Aiala Couto), o que reforça a necessidade de um amplo programa de pesquisas quantitativas e qualitativas para compreender adequadamente a situação, com o fim de conter fenômenos derivados das guerras internacionais às drogas (ver Revealing the missing link to Climate Justice: drug policy).
É importante levar a sério as denúncias de organizações indígenas, como na cartilha Não ao Marco Temporal, feita pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A tese nasceu da resolução de décadas de conflitos em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (TIRSS), que seguiu o modelo da demarcação de área contínua, tal como na Terra Indígena Yanomami (TIY) (ver Alcida Ramos e Bruce Albert). No caso da TIRSS, havia o investimento feito por produtores de arroz em terras do Estado, as antigas Fazendas Nacionais, que se sobrepuseram aos territórios ancestrais de diversas etnias, principalmente dos Macuxi e Wapichana. Além disso, a região havia sido colonizada por militares, garimpeiros e fazendeiros que eventualmente se casaram com indígenas de diversas etnias da região, ou que então “adotaram” crianças indígenas (ver Nádia Farage, Paulo Santilli). Tal processo histórico envolveu uma série de conflitos fundiários violentos e desdobramentos judiciários — dentre eles, a “tese” do Marco Temporal.
Setores do agronegócio e da mineração são os mais interessados em fixar todas as demarcações de terras a partir da Constituição de 1988. Se prevalecer a força do lobby econômico e das lideranças políticas regionais, essa perspectiva dará base jurídica para o avanço do agronegócio e da mineração legal e ilegal nas regiões mais conservadas da Amazônia. Atualmente, ela já serve de esteio ideológico para diversas infrações, como Fábio Bispo denunciou na reportagem “Fazendeiros justificam invasões a terras indígenas com marco temporal aprovado pelo Congresso” pelo InfoAmazônia.
Com efeito, a garimpagem representa o maior desafio para as Terras Indígenas. A Amazônia Legal concentra cerca 90% da área alvo de garimpo no território nacional, sendo que 12% da área degradada está localizada em Terras Indígenas (ver Antonio Oviedo e Estevão Senra). A simpatia e o apoio de diversas lideranças políticas e empresariais facilitaram a entrada de investidores com elevada capacidade financeira, bem como a adoção de novas tecnologias, como a internet via satélite e os painéis solares, uma nova geração de motores, retroescavadeiras e quadriciclos para extração de toneladas de cassiterita e ouro.
Nesse contexto, a degradação ocorrida entre 2018 e 2023 foi significativa, com operações ininterruptas de garimpagem ilegal. Em sua face mais brutal, tal quadro resultou num desastre sanitário, sociológico e econômico para os Yanomami, conforme denunciou o relatório Yanomami sob ataque. Há indícios ainda de que as frentes de garimpagem nas Terras Indígenas foram estimuladas historicamente por lideranças econômicas e políticas como uma forma de sabotagem contra as demarcações das TIs.
Enfim, os desdobramentos desse tipo de sabotagem — cujo nível é, sem exagero, industrial — contra a TI Yanomami e outras regiões são trágicos. Em meio a tudo isso, há cada vez mais exemplos de agentes do narcotráfico que utilizam a logística da garimpagem e “faccionam” garimpeiros e indígenas. É neste ponto de encruzilhada socioambiental que se insere a tese do Marco Temporal, ampliando a fragilização jurídica e política dos poucos espaços tutelados pelo Estado brasileiro que efetivamente preservam a Amazônia: as Terras Indígenas.
RODRIGO CHAGAS - Sociólogo e professor de Ciências Sociais na Universidade Federal de Roraima, membro do Programa de Pós-graduação Sociedade e Fronteiras. Atua como pesquisador junto ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO N.237
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