Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
A violência contra a mulher é um problema público que afeta diariamente meninas e mulheres de todas as classes sociais, faixas etárias e cores, ainda que em diferentes graus, a depender do recorte que se analisa. É um problema histórico e que segue sem uma solução definitiva, à medida que a sociedade ainda reproduz dinâmicas que subjugam pessoas que se identificam com o gênero feminino.
Tentar medir o problema, nesse sentido, é um passo crucial para seu dimensionamento e enfrentamento. Essa medição, entretanto, não é absoluta, sendo a violência contra a mulher um fenômeno subnotificado, de modo que, independentemente da métrica que se use, é possível que os resultados não deem conta do número real de violências sofridas por essa população. As razões para isso são diversas e vão desde o medo de buscar ajuda para lidar com a violência, até o não reconhecimento da violência como tal.
Desde 2003, o Brasil possui legislação que determina a notificação compulsória de casos de violência contra a mulher em serviços de saúde públicos ou privados. Em 2004, o decreto-lei nº 5.099 regulamentou a lei nº 10.778/2003, definindo a ficha de notificação como instrumento de notificação compulsória. Em 2006, o Ministério da Saúde implantou o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva), por meio da Portaria MS/GM nº 1.356, de 23 de junho de 2006, sendo composto por dois elementos: Vigilância de violência interpessoal e autoprovocada do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Viva/Sinan) e Vigilância de violências e acidentes em unidades sentinela de urgência e emergência (Viva Inquérito). Os dados apresentados nesta seção têm como fonte as Fichas de Notificação de Investigação Individual de Violência Interpessoal/ Autoprovocada7 do Sistema de Notificação de Agravos (Sinan).
Segundo o instrutivo do Ministério da Saúde, a ficha de notificação individual deve ser utilizada para notificação de qualquer caso suspeito ou confirmado de violência doméstica/intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal e violências homofóbicas contra as mulheres e homens em todas as idades. No caso de violência extrafamiliar e comunitária, são objetos de notificação as violências contra crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, pessoa com deficiência, indígenas e população LGBT+. Como violência doméstica e intrafamiliar, o manual do Sinan a define como aquela que “ocorre entre os parceiros íntimos e entre os membros da família, principalmente no ambiente da casa, mas não unicamente. É toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outra pessoa da família” (Brasil, 2016a, p.23).
Embora o Sinan preveja variedade de prováveis autores da violência em seu instrumento, não existe um campo específico para qualificá-la e associá-la a algum grupo. Diante deste desafio, e tendo como objetivo qualificar a discussão sobre violência doméstica e intrafamiliar, incluímos nesta categoria todos os registros cujo provável autor foi identificado como pai, mãe, madrasta, padrasto, cônjuge, ex-cônjuge, namorado(a), ex-namorado(a), filho(a), irmão(ã) ou cuidador(a). Estes representam 65,2% de todas as notificações de violência contra vítimas do sexo feminino no ano de 2022, totalizando 144.285 casos, conforme apontado na Tabela 5.7.
Dentre as formas de violência mais frequentemente notificadas no contexto da violência doméstica, a violência física apareceu como prevalente com 36,7% dos casos: 51.407 registros apenas em 2022, conforme Tabela 5.8. O segundo tipo mais frequente, com 31,1% dos registros, consiste nas “violências múltiplas”, ou seja, casos em que mais de uma forma de violência foi informada pela vítima. Na sequência temos negligência, com 11,9% dos casos, violência psicológica com 10,7%, violência sexual com 8,9% e outras formas de violência com 0,7%.
Em relação ao perfil etário, conforme apontado na Tabela 5.9, o grupo mais afetado pela violência doméstica e intrafamiliar em 2022 foram as crianças: meninas de 0 a 9 anos representaram 15,2% das vítimas. Crianças e adolescentes com idade até 14 anos representaram 24,5% das vítimas, totalizando 35.387 casos. Praticamente metade das vítimas (49,9%) são mulheres em idade reprodutiva, entre 15 e 39 anos. Mulheres idosas representaram 6,4% do total das vítimas, totalizando 9.180 casos de vítimas com 60 anos ou mais.
Assim como verificado entre as vítimas letais da violência, a análise das meninas e mulheres vitimadas por agressão em contexto doméstico e intrafamiliar demonstra uma prevalência de pessoas negras, que representam 58,2% das vítimas. Meninas e mulheres brancas correspondem a 39,8% dos registros; amarelas, cerca de 1%; e indígenas, 1% (Gráfico 5.5).
O local mais frequentemente citado como aquele em que ocorreram as agressões foi a residência, com 81% dos registros e, em segundo lugar, a via pública com 6,1% dos casos (Tabela 5.10).
Sobre a autoria da violência doméstica e intrafamiliar, os homens foram os principais agressores, responsáveis por 86,6% dos casos. Embora a participação feminina entre os agressores seja bem menor, parece ter um padrão específico do ponto de vista da idade da vítima. Quando cruzamos a faixa etária das meninas e mulheres que sofreram violência doméstica com o sexo do provável autor, verificamos que mulheres foram indicadas como prováveis agressoras em 50% dos casos com vítimas crianças de zero a nove anos de idade. No Gráfico 5.6, pode-se observar que esse percentual cai sensivelmente com o aumento da idade das vítimas, mas, quando estas chegam à terceira idade, a participação feminina na autoria do crime volta a crescer. Entre as vítimas de 65 a 69 anos, as mulheres representaram 20,1% das prováveis agressoras e chegaram a 39,9% nos casos em que as vítimas tinham mais de 80 anos.
A análise das formas de violência por faixa etária revela as distintas violações que atingem meninas e mulheres ao longo da vida, conforme apontado no Gráfico 5.7. Em 2022, entre as vítimas de zero a nove anos, a violência mais frequente foi a negligência, com 37,9% dos casos, seguido de violência sexual com 30,4%. Na faixa etária de 10 a 14 anos a violência sexual se torna prevalente – tal violação foi apontada em 49,6% dos registros no Sinan. A partir dos 15 até os 69 anos, ou seja, em toda a vida adulta da mulher, a violência física passa a ser a mais comum: na faixa etária de 15 a 19 anos esteve presente em 35,1% dos casos de violência; chegou a 49% entre mulheres de 20 a 24 anos e se manteve acima dos 40% até os 59 anos. Quando mais idosa, a partir dos 70 anos, a negligência volta a ser uma forma de violência bastante presente na vida das mulheres, crescendo até o fim da vida. Dos 70 aos 74 anos, 26,5% dos casos de violência foram classificados como negligência e 28,8% violência física. Dos 75 aos 79 anos a negligência esteve em 37,5% dos casos desta faixa etária e chegou a 50,4% em mulheres com 80 anos ou mais. Ou seja, se tivéssemos que descrever o que é ser uma mulher no Brasil, poderíamos dizer que na primeira infância é a negligência a forma mais frequente de violência, cujos principais autores são pais e mães, na mesma proporção. A partir dos 10 até os 14 anos, essas meninas são vitimadas principalmente por formas de violência sexual, com homens que ocupam as funções de pai e padrasto como principais algozes. Dos 15 até os 69 anos, é a violência física provocada por pais, padrastos, namorados ou maridos a forma de violência prevalente entre as mulheres. Quando idosas, as mulheres voltam a ser vítimas de negligência e a participação feminina entre os autores volta a crescer.
Estes dados chamam atenção na medida em que existe um robusto referencial teórico que trata da teoria da transmissão intergeracional, argumentando que testemunhar ou experimentar a violência doméstica durante a infância amplia o risco de vitimização na vida adulta, tanto porque as crianças tendem a reproduzir esses comportamentos no sentido de praticarem agressões, tanto porque essas práticas tendem a ser naturalizadas e aceitas no âmbito de um relacionamento afetivo (Neugebauer, 2000). Cochran et al. (2011) argumentam ainda que a transmissão intergeracional da violência deve ser compreendida como um preditivo da vitimização, dado que as testemunhas da violência intrafamiliar tendem a reforçá-la e justificá-la, tornando-se tão habituadas a esses padrões de comportamento que se tornam alvos adequados à sua própria vitimização.
Na mesma direção, a pesquisa de Vieira, Perdona e Santos (2011) demonstrou que um dos fatores associados à violência física por parceiro íntimo consiste em ter visto a mãe sofrer violência. A partir de pesquisa realizada com mulheres entrevistadas em cinco unidades básicas de saúde em uma cidade paulista, o estudo verificou que 33,4% das mulheres que foram agredidas por parceiro íntimo haviam testemunhado a mãe ser agredida. O estudo também mostrou que a chance de sofrer violência física aumentou 92% para as mulheres que viram a mãe sofrer violência doméstica por parceiro íntimo e 96% se o parceiro teve a mãe agredida.
Em suma, os dados apresentados neste artigo demonstram os desafios de ser mulher no Brasil. Seja na infância, na vida adulta ou na terceira idade, o fato é que a desigualdade de gênero nas relações entre homens e mulheres, consolidada ao longo de centenas de anos, segue delineando as assimetrias de poder e produzindo relações violentas que vitimam meninas e mulheres durante toda a vida (Bianchini, Bazzo e Chakian, 2022).
fontesegura.forumseguranca.org.b | EDIÇÃO N.238
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