ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024
DIFICULDADES NA COLETA E SISTEMATIZAÇÃO DE DADOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: DO MEIO FECHADO AO MEIO ABERTO
Após um intervalo de seis anos sem informações oficiais sobre o sistema socioeducativo, a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e Adolescentes (SNDCA), por meio da Coordenação-Geral de Políticas Públicas Socioeducativas (CG.SINASE), divulgou o Levantamento Anual de dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)[1].
Este levantamento inclui dados referentes ao meio fechado no primeiro semestre de 2023[2], abrangendo medidas de internação, semiliberdade, internação provisória e internação sanção, permitindo assim a descrição das características das unidades de atendimento e dos adolescentes que cumprem medida, incluindo dados sobre perfil, como gênero, raça e renda familiar, além de informações sobre os atos infracionais atribuídos, território de residência e outros elementos. Os dados apresentados no relatório fazem referência à situação do atendimento socioeducativo em 30 de junho de 2023, diferenciando-se dos demais anos, que solicitavam a data de 30 de novembro como referência para cada ano.
Quanto ao número de adolescentes cumprindo medidas restritivas ou privativas de liberdade, o Levantamento Anual reafirmou a queda no número de adolescentes no meio fechado, movimento que pôde ser observado nas duas últimas edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ainda não é possível apontar fatores determinantes que justifiquem a redução em âmbito nacional, apenas indicar hipóteses levantadas por pesquisadores e atores do sistema socioeducativo. Entre elas, a de que a queda seria um dos reflexos da recomendação n. 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), promulgada em 17/03/2020, durante a pandemia de Covid-19, e da decisão do Habeas Corpus coletivo n. 143.988/E.
Outras hipóteses relacionam a queda à diminuição do número de registros de roubo e de apreensões de adolescentes pelas forças policiais, esta última observada nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro[3].
O meio fechado e a redução no número de adolescentes cumprindo medidas
Os dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) junto às secretarias e instituições estaduais responsáveis pela gestão da socioeducação nas 27 Unidades Federativas do país indicam que a redução continua no ano de 2023. Para fins de padronização dos dados, cabe ressaltar que o FBSP optou por manter o levantamento junto às UFs, pois os números publicados no Levantamento Anual de 2023 não contemplavam todas as desagregações indicadas nas tabelas anteriormente divulgadas nos Anuários. Também se optou por manter a data de referência como 30 de novembro de cada ano, seguindo o parâmetro dos dados divulgados pelo Sinase em anos anteriores.
Como pode ser observado no gráfico a seguir, a queda começou a ser registrada a partir do ano de 2016, com acentuação em 2018. O intervalo que apresenta maior decréscimo é entre 2019 e 2020, com negativa de 7.087 em números absolutos. Se formos considerar a variação em números absolutos na última década, de 2013 para 2023, há uma diferença de -50,4%.
De 2022 para 2023, pôde-se observar uma redução de 758 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no meio fechado, que corresponde a uma variação de -6,1% na taxa por 100 mil adolescentes. Como os resultados do Censo 2022, divulgados pelo IBGE, indicaram que as projeções populacionais para os anos entre 2011 e 2021 estavam superestimadas, e ainda não houve divulgação dos novos valores para a população desses anos, optamos por calcular as taxas e variação apenas para os anos de 2022 e 2023.
Em 2023, a taxa nacional de adolescente em cumprimento de medida socioeducativa em meio fechado na data de referência, por 100 mil adolescentes, é de 46,0, e seis unidades federativas apresentaram taxas superiores à nacional. No mesmo ano, os estados que registraram as maiores taxas foram Acre (146,8), Espírito Santo (117,7), São Paulo (96,4) e Distrito Federal (92,9). E os que registraram as menores taxas foram Amazonas (6,1), Bahia (11,3), Pará (13,8) e Maranhão (16,4).
Das 27 Unidades Federativas, 18 apresentaram patamar negativo na variação da taxa, com valores que variam de -59,5% (Rio Grande do Norte) a -0,7% (Rio Grande do Sul). A redução do Rio Grande do Norte se dá, em especial, devido ao número de internações provisórias de adolescentes do sexo masculino. Em contato com a instituição responsável pela disponibilização das informações, o número foi confirmado enquanto correto.
Dentre as nove UFs que apresentaram aumento no número de adolescente em meio fechado, os estados que indicaram maior variação positiva por 100 mil adolescentes foram Santa Catarina (42,8%), Piauí (30,8%) e Paraná (18,2%). São Paulo, que em 2023 representou 41,8% do total de adolescentes internados no país, apresentou uma variação de 4,3% entre 2022 e 2023.
O perfil dos/as adolescentes no meio fechado, segundo o Levantamento Anual do Sinase de 2023
Como indicado anteriormente, com a publicação do Levantamento Anual de dados do Sinase 2023, tornou-se possível acessar informações acerca do perfil de adolescentes que cumpriam medida socioeducativa em meio fechado, na data de referência de 30 de junho de 2023. O relatório disponibilizou informações sobre gênero, raça, faixa etária, matrícula escolar, renda familiar, território de moradia, atribuição do ato infracional, adolescentes com deficiência, adolescentes usuários de CAPS e adolescentes gestantes e/ou com filhos. No momento serão destacados alguns desses indicadores.
Segundo os dados passíveis de análise coletados pelo Levantamento, 11.214 meninos cumpriam medidas socioeducativas em meio fechado, sendo 46 deles transgênero e um não binário. Com relação às meninas, havia um total de 471 cumprindo medidas, sendo dez delas transgênero. Nessa direção, pode-se observar que grande parte do sistema socioeducativo em meio fechado é composto por meninos. Nesses números eles correspondem a cerca de 96% do público atendido pelas unidades socioeducativas.
Com relação ao perfil racial, o Levantamento constatou que cerca de 63,8% dos/as adolescentes no meio socioeducativo restritivo e privativo de liberdade se declararam negros, de cor preta ou parda, 22,3% de cor branca, 0,1% de cor amarela e 0,4% indígenas. Para 214 adolescentes não havia registros quanto à cor da pele ou etnia, assim como 6,8% deles, que foram classificadas no banco como “sem informação”, devido à não disponibilização por parte de alguns estados. Esse foi o menor percentual de não informação quanto a raça, quando comparado com os Levantamentos Nacionais de anos anteriores.
Essa predominância de adolescentes negros no sistema socioeducativo acaba por se caracterizar enquanto um reflexo histórico social do racismo presente no contexto brasileiro. Ainda que sejamos um país definido a partir de um racismo por denegação[4], em que se nega a existência de um comportamento racista por parte dos indivíduos, nos momentos que se observam os cenários de homicídios de pessoas negras, letalidade policial, encarceramento no sistema prisional adulto e a punição de adolescentes, se torna evidente que o racismo é simbolicamente declarado.
No tocante aos atos infracionais atribuídos aos/às adolescentes, o relatório informa que apenas 15 Unidades Federativas disponibilizaram dados passíveis de análise, os quais apresentaram certa heterogeneidade que pode estar ligada a dinâmicas territoriais próprias, como vulnerabilidades sociais e a existência de políticas públicas específicas. Em 11 das UFs respondentes, o roubo é o ato infracional com maior atribuição. O tráfico de drogas e o homicídio figuram em primeiro ou segundo lugar em seis das UFs respondentes. Como aponta o Levantamento, nos estados respondentes há uma preponderância da atribuição de atos infracionais ligados à obtenção de renda, como o tráfico de drogas, que pode não ser enquadrado como ato cometido com violência ou grave ameaça e/ou contra a vida, não justificando a aplicação de medidas restritivas ou privativas de liberdade, segundo as legislações do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Sinase. Assim, faz-se necessário uma reflexão acerca das motivações para a aplicação de medidas em meio fechado nesses casos.
O meio aberto e a dificuldade na sistematização de dados
O Art. 2º da Lei nº 12.594/2012, que institui o Sinase, define a coordenação do sistema a partir da integração entre a União e as esferas estaduais, distritais e municipais, as quais são responsáveis pela implementação dos programas de atendimento socioeducativo aos adolescentes aos quais se atribui a prática de atos infracionais. Nessa direção, a gestão do sistema socioeducativo ocorre em âmbito nacional e a execução nos âmbitos estaduais e municipais, fazendo-se necessária a articulação de uma variedade de instâncias e instituições.
Como mencionado, as medidas socioeducativas discutidas até agora abrangem os programas em meio fechado, que é de responsabilidade estadual. Segundo a Lei do Sinase, cabe também aos Estados estabelecer meios de colaboração com os municípios para o atendimento socioeducativo em meio aberto, visto que a execução dessas medidas é de competência municipal. O atendimento em meio aberto consiste na aplicação das medidas socioeducativas de prestação de serviço à comunidade (PSC) e liberdade assistida (LA). Nesse sentido, ao tratarmos sobre os dados do sistema socioeducativo, os âmbitos estaduais são os principais responsáveis pela coleta de informações no meio fechado. Em contrapartida, no meio aberto, essa responsabilidade recai primeiramente sobre os municípios.
O Levantamento Anual do Sinase de 2023 apontou dificuldades na consolidação dos dados, devido às várias inconsistências e à falta de informações nos registros de muitos Estados. O relatório destacou que esses problemas na coleta e sistematização dos dados decorrem da ausência de Diretrizes Nacionais específicas para o tratamento e armazenamento dessas informações, agravada pela falta do Levantamento nos últimos seis anos, o que enfraqueceu a relação entre a esfera nacional e os âmbitos estaduais.
Se a organização, coleta, sistematização e armazenamento dos dados em âmbito estadual apresentam dificuldades, quando consideramos o cenário dos dados em meio aberto, podemos inferir que as dificuldades são ainda maiores. O fato de os municípios brasileiros serem muito numerosos tem como reflexo uma variedade de programas de atendimento aos adolescentes. Soma-se a isso as particularidades e características de cada território, bem como a ausência de Diretrizes Nacionais que se apliquem não só aos Estados, mas também aos municípios. Esses fatores agravam ainda mais a situação da precariedade dos dados a nível municipal.
O último relatório oficial de abrangência nacional, referente às medidas socioeducativas cumpridas em meio aberto, foi realizado em fevereiro/março de 2018 pela Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), do então Ministério do Desenvolvimento[5]. A pesquisa informou que, em 2018, havia 117.207 adolescentes e jovens cumprindo medidas socioeducativas de LA e/ou PSC no Brasil, representando 82% de todas as medidas aplicadas no país.
Nessa direção, cabe indicar a existência de uma plataforma com dados atuais sobre o meio aberto, o “Panorama de Execução de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto”, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[6], que apresenta os quantitativos a partir de 2022. Os dados do Panorama são sistematizados por meio das fiscalizações realizadas pelos Ministérios Públicos, em cumprimento à resolução CNMP nº 2014, de 16 de dezembro de 2019[7], aos programas municipais de atendimento para a execução das medidas socioeducativas em meio aberto. A apresentação dos dados quantitativos de LA e PSC no Panorama são de fácil visualização e interpretação, mas, infelizmente, ainda não abrangem todos os municípios brasileiros.
Considerando esse contexto de dificuldade de organização e carência de dados sobre o meio aberto, o FBSP se dedicou a sistematizar os dados de cumprimento das medidas de LA e PSC, em âmbito nacional, a partir do Censo SUAS, realizado pela Secretaria Nacional de Assistência Social[8]. O Censo SUAS coleta informações sobre diferentes temas pertinentes aos programas, instituições, gestões e políticas da assistência social, nos âmbitos estaduais e municipais.
Os dados sistematizados foram acessados na parte de “Gestão Municipal”. Após análise das bases de diferentes anos, observou-se que a pergunta sobre a quantidade de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de LA e/ou PSC passou a ser incluída no questionário das gestões municipais a partir do ano de 2020[9], sendo possível organizar uma série de quatro anos, de 2020 a 2023. Cabe ressaltar que o percentual de preenchimento do questionário variou entre os anos. A partir da análise das bases, verificou-se que em 2020 houve, em âmbito nacional, 96,6% de preenchimento, 98,8% em 2021, 99,4% em 2022 e 99,1% em 2023. O percentual de preenchimento também variou para as informações sobre a quantidade de adolescentes cumprindo medidas em meio aberto, assim, o preenchimento geral do questionário não corresponde ao preenchimento dos quantitativos de medidas em meio aberto, esses últimos possuem percentuais inferiores ao geral.
Por meio da análise e interpretação das bases e questionários, verificou-se que a falta de preenchimento das informações sobre as medidas pode ocorrer tanto porque a Gestão Municipal desconhece o número de adolescentes cumprindo medida, quanto por não ter respondido à pergunta sobre essa quantidade. Este segundo motivo pode ser atribuído à inexistência de adolescentes cumprindo medida em meio aberto no município ou à ausência desses serviços administrados pela gestão municipal.
O gráfico a seguir apresenta a quantidade total de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, desagregado por medidas, independente da forma de atendimento. É possível observar que entre 2020 e 2022 o total de adolescentes que cumprem LA e/ ou PSC se manteve relativamente estável, reduzindo em 2023, com uma diferença de 31.762 quando comparado com 2022. O mesmo movimento pode ser observado para as medidas de LA e PSC, mas de forma menos acentuada.
Um dos motivos para a significativa redução em 2023 poderia ser o percentual de preenchimento para as questões dos quantitativos de adolescentes cumprindo medidas em meio aberto, mas, o percentual nacional de preenchimento dessas questões é o maior dentro do período analisado. A diferença, no entanto, pode ser justificada a partir da qualidade dos dados disponibilizados pelas gestões municipais.
O quadro a seguir apresenta, com desagregações por medida e UF, os números informados pelas gestões municipais. Pôde-se observar que há muitas discrepâncias ao longo do período para diversos Estados, números que fogem da lógica da série e destoam dos demais anos. Além de que, caso os números de LA e PSC sejam somados, o valor pode ser superior ao Total, visto que um adolescente pode cumprir essas duas medidas ao mesmo tempo. No entanto, há casos em que a soma é inferior ao Total, indicando que há inconsistências nos valores informados ao Censo SUAS.
Ainda que os dados disponibilizados pelas gestões municipais ao Censo SUAS apresentem inconsistências, é de suma importância que eles continuem sendo questionados junto às esferas municipais, com uma perspectiva de aproximação e diálogo da gestão nacional junto ao âmbito responsável pela execução das medidas em meio aberto. No mesmo sentido, a esfera estadual precisa funcionar de maneira integrada aos municípios, em consonância com a Portaria Conjunta nº 1, de 21 de novembro de 2022, que estabelece normas gerais para a integração entre os programas de atendimento socioeducativo em meio aberto e fechado, como prevê a Lei do Sinase.
Os dados apresentados ao longo do texto apresentam um cenário que ainda está longe do desejado quando precisamos ter como parâmetro informações periódicas e confiáveis sobre o sistema socioeducativo, dificultando a fiscalização e a produção de diagnósticos mais completos nesse âmbito da justiça juvenil[10]. Apenas o monitoramento constante das condições de privação de liberdade e dos programas em meio aberto oferecidos a esses adolescentes, assim como a produção periódica de informações sobre essas condições, poderá estabelecer espaços confiáveis para garantia de direitos da juventude brasileira, que, infelizmente, é constantemente violentada, especialmente quando consideramos territórios e perfis específicos.
[1] O Sinase foi instituído pela Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, que além de instituir o Sistema, regulamenta a execução das medidas socioeducativas.
[2] Disponível AQUI:
[3] Essas hipóteses foram detalhadas em: BARROS, Betina; Carvalho, Thais. A queda das internações de adolescentes a quem se atribui ato infracional. In: ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2022. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 16, 2022. ISSN 1983-7364.
[4] GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização de Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
[5] Disponível AQUI:
[6] Disponível AQUI:
[7] Disponível AQUI:
[8] Os dados de todos os anos podem ser acessados AQUI:
[9] Nos questionários, a questão está descrita da seguinte forma: Nos últimos 12 meses, informe o total de adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas (LA e/ou PSC) independente da forma de atendimento: – Total de adolescentes em cumprimento de LA: [Inserir número] – Total de adolescentes em cumprimento de PSC: [Inserir número] – Total de adolescentes (pode haver casos de adolescentes que cumprem LA e PSC ao mesmo tempo, desse modo a soma dos números de LA e PSC acima pode ser maior do que este total): [Inserir número]
[10] GISI, Bruna; VINUTO, Juliana. Transparência e garantia de direitos no sistema socioeducativo: a produção de dados sobre medidas socioeducativas. Boletim IBCCRIM, Ano 28, N. 337, Dezembro/2020.
Este texto foi originalmente publicado na 18ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra do documento pode ser acessada AQUI:
THAIS CARVALHO - Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
fontesegura.forumseguranca.org.bt | EDIÇÃO N.241
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