A modernização das ferramentas de descapitalização do crime organizado está na ordem do dia e isso só será possível por meio da qualificação da investigação criminal e da articulação, em nível nacional, das instituições de segurança pública, de justiça criminal, de inteligência financeira, do setor privado, incluindo as instituições financeiras, e de cooperação internacional, entre outras.
O fenômeno do crime organizado é hoje um dos principais desafios à segurança pública no Brasil e demanda do Estado uma nova abordagem para fazer frente ao seu crescente poder. Hoje, o país precisa lidar com ao menos 72 facções criminosas de base prisional (Senappen, 2024), que têm no narcotráfico uma de suas principais fontes de poder econômico. Além de ser um mercado consumidor relevante, o Brasil é um entreposto importante na cadeia transnacional da cocaína, que é produzida na América do Sul e consumida em outros centros, como Europa, Ásia e África. Os maiores produtores globais, Colômbia, Peru e Bolívia, são países vizinhos ao Brasil e parte significativa do volume produzido é direcionada a estes outros grandes mercados consumidores, saindo de portos e aeroportos brasileiros. Nesse contexto, as organizações criminosas mostram sua relevância, especializando-se em controlar rotas para o tráfico transnacional, entre os países produtores e os países consumidores, e controlando rotas interestaduais, territórios e pontos de venda para o varejo nacional. Por ser um mercado de enorme valor agregado e não regulado pelo Estado, o crime organizado explora vulnerabilidades sociais e institucionais, e tem grande capacidade de produzir violência e restringir direitos nos territórios nos quais atua.
Evidencia-se, portanto, a importância da observação da dinâmica da criminalidade organizada na modalidade tráfico de drogas. Um dos dados para a realização desse monitoramento é o volume de apreensão de drogas feito pelas instituições de segurança pública e outras instituições com responsabilidades de controle e fiscalização. Tais dados, analisados em conjunto com outras informações, podem revelar tendências na dinâmica criminal, assim como nas estratégias de controle adotadas pelas instituições estatais.
O país ainda carece de uma melhor harmonização com relação aos indicadores de apreensões de drogas por parte das instituições de segurança pública e outras instituições de controle. Atualmente, os dados nacionais são os das apreensões registradas pela Polícia Federal que, no entanto, não correspondem a todas as apreensões. Faltam parâmetros para compatibilização também das apreensões realizadas por instituições de nível estadual, de modo a não haver duplicação dos volumes apreendidos. Os dados sobre apreensão de drogas sistematizados nesta edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública são um primeiro passo para o monitoramento desse fenômeno em bases recorrentes no Brasil.
As informações sobre os volumes de apreensão de drogas no Brasil apresentadas neste Anuário têm como fonte a Polícia Federal, mas é necessário esclarecer que esses dados não se referem apenas ao que foi apreendido pela PF: uma vez que temos, no Brasil, diferentes atribuições de polícias administrativa e judiciária, outras instituições de segurança pública podem encaminhar suas apreensões à polícia judiciária federal. Assim, os números apresentados podem conter apreensões dessas outras instituições.
Para melhor análise do fenômeno, os dados focalizam sobretudo as apreensões de maconha, cocaína e seus insumos e derivados.[1] Além de o mercado e circulação dessas drogas serem muito significativos, há uma dificuldade em padronizar os dados referentes a outras drogas, uma vez que as medidas de quantidade são variadas, podendo ser comprimidos, frascos e microsselos, além do peso. Para efeitos de análise neste texto, vamos assumir as apreensões registradas pela PF como proxy das apreensões no Brasil. Além disso, vamos analisar mais detidamente a dinâmica das apreensões de cocaína, de valor agregado superior ao da maconha, e com maior inserção na dinâmica transnacional da droga.
AS APREENSÕES DE COCAÍNA ENTRE 2013 E 2023
O volume acumulado das apreensões de cocaína registradas pela PF entre 2013 e 2023 foi de 729,9 toneladas. Nesse período de 10 anos, o volume apreendido apresentou crescimento de 73,7%, saindo de 41,7 toneladas em 2013 e alcançando 72,5 toneladas em 2023. Contudo, entre 2022 e 2023, as apreensões de cocaína recuaram 24,9%.
O pico de apreensões nesta série histórica ocorreu em 2019, com incríveis 104,6 toneladas de cocaína. É interessante notar que entre 2017 e 2018 ocorreu o principal salto em termos de volume de apreensões, quando houve um crescimento de 64,8%, a maior variação anual da série. O pico da taxa de homicídios no Brasil se deu em 2017, no contexto de um amplo conflito entre as facções criminosas de amplitude nacional: Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV). Desta forma, é possível afirmar que os registros de apreensões de cocaína alcançam e se estabilizam em patamar superior a partir de 2018. Entre 2018 e 2023, a média de toneladas apreendidas é de 89,6, contra média de 38,5 toneladas apreendidas no período 2013-2017.
Segundo o World Drug Report 2024,[2] do Unodc, a oferta global de cocaína alcançou um pico histórico em 2022, com mais de 2.700 toneladas (100% puras) produzidas naquele ano, um crescimento de 20% em relação ao ano anterior (a área destinada ao cultivo da coca cresceu 12% entre 2021 e 2022). Entre 2010 e 2022, a produção de cocaína (100% pura) cresceu 143% no mundo, ao passo que as apreensões cresceram 220% (sem ponderação pela pureza). Se a oferta tem crescido no mundo, tem aumentado também a violência associada a esse mercado na América do Sul, com destaque negativo para o Equador, que viu sua taxa de homicídios quintuplicar entre 2019 e 2022, e no Caribe, assim como têm crescido os efeitos deletérios do uso abusivo, em regiões como Europa Central e Ocidental e África.
As estimativas do Unodc indicam que o preço médio do quilo da cocaína no atacado na Europa em 2022 era de 39,2 mil dólares (ou R$ 213 mil em valores atualizados para 2024)[3]. Assim, o volume de cocaína apreendido em 2023 (72,5 t) equivaleria a 2,9 bilhões de dólares ou 16 bilhões de reais (em valores de 2024). Estimativas de delegados da PF dão conta de que apenas aproximadamente metade da cocaína que passa pelo Brasil é apreendida. Se levarmos em consideração essas estimativas, para fins de exercício especulativo, o volume total do mercado da cocaína que passou pelo Brasil em 2023 equivaleria a, ao menos, 5,8 bilhões de dólares ou 32 bilhões de reais (valores de 2024).[4]
APREENSÕES DE COCAÍNA EM NÍVEL SUBNACIONAL
Em nível subnacional não é possível perceber muitos padrões nas apreensões ao longo do tempo, mas é possível analisar algumas curvas que se destacam na última década.
Em 2023, o Centro-Oeste passa a ser a região com maior volume: 23,6 toneladas, a maior parte registrada em Mato Grosso. O volume de cocaína apreendida apenas nesse estado foi maior do que o da região Norte inteira (7,4 toneladas). Nos 9 anos anteriores da série histórica, o Sudeste foi a região com maior volume de apreensões, embora desde 2019 apresente tendência de redução, sendo finalmente superada pelo Centro-Oeste em 2023. Entre 2022 e 2023, embora o Brasil tenha registrado redução no volume de apreensões de cocaína, duas regiões registraram aumento: no Centro-Oeste subiu 9,8%; no Sudeste, o crescimento foi de 23,9%.
Destacam-se, em 2023, os estados com maiores volumes de apreensões registradas: São Paulo, com 16,9 toneladas; Mato Grosso, com 14,1 t; Paraná, com 8,3 t; Rondônia, com 3,8 t e Pernambuco, com 3,7 t. Pernambuco, por sinal, chama atenção por ter sido o estado com as maiores variações tanto no último ano (+779,7% entre 2022 e 2023) quanto na série histórica completa (incríveis 1.162,5% no período 2013-2023).
Na última década, é interessante notar quais são os estados com maiores volumes acumulados de apreensões de cocaína. São Paulo é a unidade da federação com maior volume acumulado: 231,8 t, 2,8 vezes mais do que o estado que ficou em segundo lugar, Paraná, com 83,4 t. Na sequência temos Mato Grosso, localizado no Centro-Oeste, mas pertencente à Amazônia Legal, com 80,9 t, e Mato Grosso do Sul, com 61 t. Com um pouco mais de metade desse volume, temos a Bahia, ocupando o quinto lugar, com 33,4 t. Amazonas e Rondônia, com 20 t cada um, representam a região Norte. Tais concentrações parecem apontar pontos relevantes para as rotas transnacionais: estados fronteiriços, vizinhos de países produtores, como Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Amazonas e Rondônia. E do outro lado temos estados com saída para o mar, como São Paulo e Bahia.
Vale ainda destaque o aumento vertiginoso de cocaína apreendida na região Norte em 2022: foram 19 toneladas em uma região onde a média dos 10 anos analisados ficou em torno de 6 toneladas. Foi uma variação de 165% em relação ao ano anterior, que não foi acompanhada em 2023, ano em que os números voltam ao patamar atingido em 2021. Os estados que puxaram esse crescimento foram, sobretudo, Amazonas e Rondônia. É de se questionar a razão desse aumento, dificilmente explicado apenas por uma maior atuação das forças de segurança federais. Ademais, como já apontado, a apreensão de cocaína no país teve redução entre 2022 e 2023. As 9 Unidades da Federação que apresentaram crescimento no último ano foram Amapá, Amazonas, Roraima, Bahia, Pernambuco, Piauí, Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul.
APREENSÕES DE MACONHA
Entre 2013 e 2023, a PF registrou apreensões cujo volume acumulado foi da ordem de 3,6 mil toneladas de maconha no Brasil. No período, o volume anual apreendido apresentou crescimento de 87,1%, saindo de 222,6 t em 2013 para 416,4 t em 2023. A variação entre 2022 e 2023 foi de 0,4%.
É possível notar que o volume de apreensões de maconha subiu mais do que o de cocaína no período, variando 87,1%, enquanto a cocaína teve aumento de 73,7%. Foi, também, o baixo volume de cocaína apreendido em 2023 o responsável pela queda nas apreensões: em 2023 foram apreendidas 72,5 toneladas de cocaína, 25% a menos que as 96,4 do ano anterior, enquanto a maconha praticamente se manteve estável. Em outra perspectiva, destaca-se que o aumento significativo das apreensões em 2020 foi puxado pelas apreensões de maconha, que subiram 105% em relação a 2019, enquanto a cocaína apresentou queda de 12,7% nas apreensões, após ter sido responsável por uma incomum proporção de 30% das apreensões em 2019 (em geral a cocaína compõe uma média de 17% dos volumes apreendidos a nível federal).
As apreensões de maconha em 2023 concentraram-se na região Sul (particularmente no Paraná), responsável por mais da metade das apreensões nacionais, seguida do Centro-Oeste. Trata-se de uma mudança de padrão, iniciada em 2021, em que as apreensões de maconha parecem ter-se deslocado justamente do Centro-Oeste para o Sul. Ainda em termos regionais, nota-se um incremento considerável nas apreensões de maconha na região Norte: o salto observado entre 2021 e 2022 (cujo patamar se manteve em 2023) foi da ordem de 347%, de responsabilidade, novamente, das apreensões no Amazonas e Rondônia. São também dignos de menção os baixos volumes de maconha e cocaína apreendidos no Amapá, especialmente em relação ao restante da região da qual faz parte, conhecidamente estratégica para o tráfico.
REGISTROS DE APREENSÕES PELAS INSTITUIÇÕES ESTADUAIS DE SEGURANÇA PÚBLICA
Outra fonte de informações a ser considerada sobre o fenômeno das apreensões são os Boletins de Ocorrência registrados pelas Polícias Civis estaduais. Como relatado no início deste texto, ainda não é possível proceder a uma contabilização precisa do volume total de drogas apreendido no Brasil em função da ausência de parâmetros para a harmonização das apreensões em nível federal, incluindo as apreensões realizadas pela Polícia Rodoviária Federal, Receita Federal, Força Nacional de Segurança Pública e Forças Armadas, além da própria Polícia Federal, e estadual. Tal desafio está sendo enfrentado por meio de uma parceria entre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senad/MJSP) e FBSP, em diálogo com as instituições de segurança pública.
Contudo, neste momento, é possível afirmar que foram registrados 240.092 boletins de ocorrência com apreensão de drogas no Brasil em 2023, 7,7% a mais que no ano anterior. Comparando as taxas por 100 mil habitantes das Unidades da Federação, estados como Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Norte e Santa Catarina têm taxas acima da média nacional. E, na contramão do incremento nos registros em nível nacional, Amazonas, Distrito Federal, Goiás e Rio Grande do Norte foram alguns dos estados que diminuíram seus registros de apreensão de drogas em 2023. Infelizmente, ainda não é possível precisar o tipo de droga e o volume apreendido.
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Este primeiro esforço de sistematização de dados sobre apreensão de drogas no Brasil, por meio do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, teve o êxito de colocar luz sobre algumas das dinâmicas que ajudam a explicar a centralidade que o crime organizado alcançou no país e os riscos que oferece à segurança pública, assim como ilustrar a magnitude do poder econômico que o narcotráfico, enquanto cadeia de valor transnacional, aglutinou. Neste contexto, não é difícil compreender a desmotivação que muitos profissionais de segurança pública relatam quando dizem que se sentem a “enxugar gelo”. O Estado brasileiro precisa aperfeiçoar, de maneira breve, suas estratégias de enfrentamento das organizações criminosas, que operam um mercado bilionário e crescente com muito sucesso. A modernização das ferramentas de descapitalização do crime organizado está na ordem do dia e isso, é importante que se diga, só será possível por meio da qualificação da investigação criminal e da articulação, em nível nacional, das instituições de segurança pública, de justiça criminal, de inteligência financeira, do setor privado, incluindo as instituições financeiras, e de cooperação internacional, entre outras.[5] Só assim será possível blindar a economia formal e as instituições democráticas do país das influências deletérias do crescente poder econômico do crime organizado.
[1] Para maconha, insumos e derivados incluem haxixe, semente de maconha e skunk. Para cocaína, incluem semente de coca.
[2] Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/world-drug-report-2024.html
[3] Segundo conversor de moedas do Banco Central do Brasil, disponível em https://www.bcb.gov.br/conversao. Consulta em 15/07/2024.
[4] Em trabalhos anteriores do FBSP, buscando retratar o potencial da receita da cadeia de valor da cocaína, fizemos estimativas com base no valor de venda da cocaína no varejo na Europa. Para a presente análise, optamos por utilizar o valor de venda da cocaína no atacado, de modo a estimar o potencial impacto financeiro das apreensões nas organizações criminosas brasileiras que negociam a droga no atacado na Europa.
[5] Para uma discussão mais aprofundada sobre segurança pública e crime organizado, com propostas concretas para incrementar a capacidade estatal de enfretamento do crime organizado, ver: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/fcb7e2a1-8f36-487e- -9190-8ecf4d294747
DAVID MARQUES - Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
MARINA BOHNENBERGER - Mestre em Antropologia pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
fontesegura.forumseguranca.org.br | EDIÇÃO N.243
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