Em junho deste ano, o Brasil foi surpreendido com uma ameaça gigantesca: o de mulheres e meninas perderem o direito de interromper uma gestação decorrente de estupro, independentemente da fase gestacional. Trata-se do Projeto de Lei 1.904, que endurece as penas do aborto criminoso e proíbe o aborto legal no caso de estupro se já houver passado da vigésima segunda semana de gestação, um direito garantido pelo Código Penal desde 1940. Numa manobra política no mínimo imoral, a Câmara dos Deputados aprovou a tramitação em regime de urgência da matéria, o que significa que o Projeto pode ser votado e aprovado diretamente em plenário, sem uma discussão mais profunda nas comissões.
Ocorre que a sociedade civil reagiu imediatamente, com apoio da maior parte da imprensa, o que levou a discussão para as ruas e manifestações pelo Brasil afora. Não sabemos ainda como seguirá essa história, mas uma coisa é certa: conseguimos brecar o processo, o que já é uma vitória.
Fiz esta introdução para dizer da importância dos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública que, desde 2019, vem mostrando à sociedade que a maior vítima de estupro no Brasil é a menina com menos de 14 anos. Não é à toa que o grito que se ouvia nas manifestações, o mote de resistência ao PL, era “criança não é mãe, estuprador não é pai”.
Se os dados que todo ano o FBSP heroicamente (não é exagero!) consegue coletar e analisar nos mostram quem é a vítima de estupro, também nos revelam quem é o autor dessa violência. Na maioria esmagadora dos casos, é um familiar próximo. Essa informação foi muito importante para explicar por qual motivo uma menina grávida em razão de um estupro vai demorar para chegar ao sistema de saúde (quando chega…) e poder fazer um aborto legal. A proximidade do agressor com a vítima, a pouca idade dela e o segredo e vergonha da família geram o silêncio perverso que perpetua essa violência, muitas vezes revelada quando a menina aparece grávida. Essa percepção é corroborada por um estudo realizado entre os anos de 1994 e 2015 no Hospital Pérola Byington (atual Hospital da Mulher), com adolescentes entre 12 e 17 anos grávidas. O trabalho comparou dois grupos: um deles, formado por aquelas que haviam sido vítimas de estupro incestuoso; outro constituiu-se de estupradas e engravidadas por desconhecidos. Um dos resultados aponta que as meninas estupradas por parentes eram mais novas e chegavam ao sistema de saúde em período mais avançado de gestação; boa parte delas, depois da vigésima terceira semana.[1]
Se é verdade que contra fatos (e boletins de ocorrência são fatos) não há argumentos, ficou muito difícil rebater a tese de que as maiores vítimas da eventual aprovação desse PL seriam meninas de 10, 11, 12 anos, estupradas, boa parte delas, por pais e padrastos. E foi isso que, com certeza, sensibilizou grande parte da sociedade, dando origem ao movimento necessário para deter esse enorme retrocesso de direitos.
Dito isto, vamos olhar para os dados de 2023 que, como nos anos anteriores, colocam-nos em dúvida. O que tem aumentado são os casos, as denúncias ou os dois? Afinal, houve aumento de registros em todas a formas de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Somados, os registros de estupro e estupro de vulnerável subiram de 78.887 em 2022 para 83.988 em 2023, sendo que 76% desses casos foram de estupro de vulnerável. Não custa relembrar que o estupro de vulnerável se caracteriza não só pela prática de conjunção carnal ou outro tipo de ato libidinoso com menores de 14 anos, mas também com qualquer pessoa que tenha enfermidade ou deficiência mental que impeça o consentimento livre para o ato ou, ainda, com alguém que esteja temporariamente em um estado que não permita o oferecimento de resistência.
Com o recorte de menores de 14 anos, temos 61,6% dos casos registrados, o que significa mais de cinco estupros de menores de 14 anos registrados por hora no país. Em 88,2% desses registros, a vítima é uma menina. Quanto à idade, as meninas seguem o padrão dos anos anteriores, uma curva crescente de ocorrências que apresenta seu pico aos 13 anos. Quando se observa a idade dos meninos, surge neste ano um dado interessante, e que dá o que pensar. Diferentemente de 2022, quando se observava um pico de estupros contra meninos com idades entre 5 e 9 anos, em 2023 a violência a partir dos 3 anos permanece quase a mesma até os 13 anos.
Isso tanto pode significar que meninos mais velhos estão sofrendo mais esta violência, como que resolveram denunciar. Digo isso porque temos visto um fenômeno importante nas redes sociais, de homens falando sobre violências sexuais que sofreram na infância mas, mais recentemente, relatando violências sexuais praticadas por mulheres! O rompimento do silêncio dos homens sobre violências sexuais que sofreram na infância já é uma grande evolução, mas o reconhecimento de que meninos podem ser estuprados por mulheres é uma grande quebra de paradigma! Enfim, é cedo para fazer uma projeção sobre tal dado, mas vale refletirmos.
Como nos anos anteriores, a residência continua sendo o local mais perigoso para crianças e adolescentes no que tange à prática de violência sexual. Segundo os registros, 65,1% dos crimes aconteceram dentro de casa, enquanto a via pública é apontada em apenas 9,9% dos casos.
Em relação ao autor do crime, pode-se afirmar que 63,3% foram praticados por familiares e 22,2%, por outros conhecidos. O grau de parentesco está muito difícil de afirmar neste ano, diante da péssima qualidade do preenchimento do dado nos Boletins de Ocorrência. Aliás, essa é uma questão para a qual teremos que olhar com seriedade se quisermos avançar na qualidade de dados para o enfrentamento das violências. Não tem o menor cabimento que, em pleno século XXI, com a sociedade discutindo inteligência artificial, não tenhamos ainda no Brasil uma padronização e um preenchimento digital de registros policiais.
O Anuário vem chamando a atenção para a raça/cor das vítimas. No ano passado, vimos que a maior parte das vítimas era formada por meninas negras. Este ano o dado extraído mostra que as meninas negras continuam sendo as maiores vítimas (51,9%), seguidas por brancas (47,1%), indígenas (0,5%) e amarelas (0,4%).
Seis estados brasileiros apresentaram diminuição na taxa de incidência de estupro de vulnerável por 100 mil habitantes. Foram eles: Amapá (-3,4%), Maranhão (-0,6%), Rio de Janeiro (-5,0%), Rio Grande do Sul (-6,3%), Roraima (-6,9%) e Tocantins (-4,5%). Quatro deles integram os chamados Estados Amazônicos, para os quais, no texto do Anuário 2023, chamamos atenção sobre as altas taxas de violência sexual contra crianças e adolescentes. Apesar da variação negativa de um ano para o outro, eles ainda estão entre os Estados com piores taxas, ranking este liderado por Roraima, com 88,7 casos para cada 100 mil habitantes.
Da mesma forma, o Mato Grosso do Sul fornece índices sempre alarmantes. Apesar de ter diminuído em 4,7% a taxa de incidência de estupro de vulnerável de 2021 para 2022, no ano de 2023 houve incremento de 9,6% nas taxas deste crime, chegando a 79,2 ocorrências por 100 mil habitantes. Talvez isso explique o fato de que, em primeiro lugar na lista dos 50 municípios com mais de 100 mil habitantes com as piores taxas desse crime, esteja Dourados, município do MS, com a marca assustadora de 343,2 ocorrências por 100 mil habitantes de 0 a 13 anos. Dourados é seguido por Sorriso (326,3) no Mato Grosso e Passo Fundo (312,3), no Rio Grande do Sul.
Os dados que vimos até agora foram do crime de estupro de vulnerável, com recorte de vítimas de até 13 anos. Mas, pensando na violência sexual contra crianças e adolescentes, importante levantar a régua até as vítimas menores de 18 anos. Se vítimas até 13 anos representam 61,6% dos registros, vítimas até 17 anos representam 75% de todos os estupros registrados em 2023. Para dar concretude a essa porcentagem vamos traduzir esse dado em números absolutos: a cada hora, o Brasil registra sete estupros de crianças e adolescentes!
Chamamos atenção aqui para algo que vimos falando insistentemente: a maior vítima de estupro não é a mulher, mas a menina, e precisamos ter clareza sobre isso para podermos discutir políticas públicas de enfrentamento dessa violência!
Os registros de exploração sexual infantil em 2023 também aumentaram, mas continuam longe de representar a realidade de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. O número de registros apontados subiu de 1.011 para 1.255, uma taxa de 2,6 ocorrências por 100 mil habitantes. Contrariamente ao estupro de vulnerável, cuja maior parte das vítimas são meninas entre 10 e 13 anos, neste crime mais de 60% das vítimas tem entre 14 e 17 anos. Há uma hipótese para essa diferença: o crime de exploração sexual prevê a punição de três agentes distintos: quem intermediou a relação sexual com menor de 18 anos, quem pagou e praticou o ato com a menina ou menino e, ainda, o dono ou responsável pelo estabelecimento onde ela ocorreu. Se a vítima for menor de 14, quem praticou o ato sexual responderá por estupro de vulnerável; os demais, por exploração sexual. Ocorre que, em boa parte das ocorrências de exploração sexual, só aparece a figura de quem pagou pela prática sexual. Nesse caso, em sendo a vítima menor de 14 anos, não será registrado o crime de exploração, mas de estupro. Como disse, é só uma hipótese sobre a razão de termos aqui mais vítimas entre 14 e 18 anos, enquanto, no estupro, há mais meninas menores de 14 anos. Mas a validação dessa hipótese demandaria um estudo aprofundado das ocorrências.
A verdade é que, no contexto da violência no país, esse nem seria um crime para causar grandes preocupações, mas tão somente a punição dos criminosos. Ocorre que é justamente esse número baixo que preocupa e exige que paremos para refletir e pensar políticas públicas eficientes de enfrentamento. Venho dizendo isso com insistência e vou citar novamente o argumento que uso para me apoiar: se a Polícia Rodoviária Federal já mapeou mais de 9 mil pontos vulneráveis de exploração sexual infantil só nas rodovias federais, como temos apenas 1.255 ocorrências registradas? É que este é um crime “aceito”, naturalizado pela prática de uma sociedade machista. Tão aceito quanto o casamento infantil (somos atualmente o sexto país com as piores taxas) ou a gravidez na adolescência (temos dois bebês filhos de mães menores de 14 anos nascendo por hora no Brasil). O número de registros policiais dessa violência reflete tal realidade. Vale destacar que, em 8% dos registros de estupro de vulnerável, o autor consta como sendo o “companheiro” ou “ex-companheiro” da vítima, lembrando que a vítima, no caso, tem menos de 14 anos! Por fim, mas não menos importante, a chamada “pornografia infanto-juvenil”, que, no recorte do estudo, abrange os crimes previstos nos art. 240, 241, 241 A e B do ECA e que diz respeito a qualquer registro (foto, vídeo etc.) envolvendo sexo e criança ou adolescente. Ao tratarmos esses dados, estamos enfocando uma parte dos chamados crimes sexuais virtuais, que são mais amplos e podem envolver outras condutas.
Aqui, o número de ocorrências quase dobrou de um ano para outro, com um aumento de 1.957 para 2.790 casos. Importante ressaltar que os estados de Rondônia e Espírito Santo não possuíam nenhum registro em 2022 e continuam sem registrar esse crime em 2023.
Por razão diversa da exploração sexual infantil, esses números também não refletem a realidade dessa violência, que tem crescido assustadoramente. Segundo a Organização Social SaferNet, em 2023 mais de 71 mil denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil chegaram à sua Central Nacional de Crimes Cibernéticos, número 77% maior do que em 2022. A organização desenvolveu, com apoio do governo do Reino Unido, o curso “Segurança e Cidadania Digital em sala de aula”, que se propõe a preparar professores para falarem sobre temas como bem-estar digital, uso saudável de tecnologias, segurança digital, privacidade, combate ao cyberbullying e outras violências online. O curso foi lançado pelo Ministério da Educação em outubro de 2023. Acreditamos fortemente que educar para a prevenção de violências virtuais ou presenciais é fundamental, e a escola é o espaço mais adequado para isso. Mas educar crianças e adolescentes para estarem no mundo virtual não exclui a discussão sobre a responsabilidade dos provedores de plataformas digitais, conversa que não é fácil, mas extremamente necessária se considerarmos a vulnerabilidade de crianças e adolescentes nesse ecossistema.
Aliás, a vulnerabilidade de crianças e adolescentes precisa ser urgentemente considerada em relação a todos os ambientes, mas sobretudo os familiares e virtuais, como demonstram os dados do Anuário!
[1] Characterization of Adolescent Pregnancy and Legal Abortion in Situations Involving Incest or Sexual Violence by an Unknown Aggressor https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6722962/
LUCIANA TEMER - Advogada, professora de Direito Constitucional na PUC-SP e diretora-presidente do Instituto Liberta.
fontesegura.forumseguranca.org.br | EDIÇÃO N.243
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