Embora a segurança seja provida pelo Estado como um bem coletivo, ela também é uma mercadoria transacionada no mercado. Em muitas partes do mundo, o mercado de segurança privada ocupa mais pessoas do que o setor de segurança pública. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, por exemplo, mostrou que no primeiro trimestre daquele ano o número de pessoas ocupadas como segurança no Brasil, estimado em torno de 1 milhão e 100 mil pessoas, era 1,4 vez maior do que o número de pessoas ocupadas no setor de segurança pública. Cerca de 55% desses seguranças atuavam à margem da regulação e do controle que o Estado exerce, via Polícia Federal, sobre o setor de segurança privada (estimativa de 600 mil seguranças não controlados).
Esses dados indicam uma característica marcante do mercado de proteção brasileiro, que é o baixo controle que o Estado exerce sobre ele. Entretanto, os dados revelados pelo Anuário de 2022 não mostram a parte mais preocupante e sintomática dessa ausência de controle, que é o envolvimento ilegal de agentes do próprio Estado na organização e/ou prestação de serviços de segurança privada – o chamado bico policial. A “Pesquisa de Vitimização e Percepção sobre Violência e Segurança Pública”, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pela Folha de S. Paulo ao Instituto Datafolha, traz algumas informações inéditas sobre essa zona cinzenta do mercado de proteção brasileiro e suas consequências.
O bico policial na segurança privada
A participação de agentes públicos na gestão de empresas de segurança ou na prestação direta de serviços de proteção é proibida pelas organizações policiais brasileiras. Entretanto, é um fenômeno disseminado. A pesquisa mediu a exposição das pessoas ao bico policial por meio da seguinte pergunta: “O seu bairro conta com a oferta de serviços de vigilância privada prestados por policiais de folga?”. Segundo o levantamento (Gráfico1), 18% dos entrevistados responderam “Sim”. Considerando a margem de erro de 2% da pesquisa, a estimativa é de que entre 26 e 31 milhões de pessoas com 16 anos ou mais morem em bairros onde há policiais fazendo bico como segurança. Não há dúvida de que essa é uma estimativa conservadora. Como o bico na segurança é uma atividade irregular, os policiais prestam serviços de maneira velada, isto é, sem uniforme e com a arma encoberta, o que cria dificuldades para a sua identificação pelas pessoas. Mesmo assim, os dados apontam para um fenômeno com penetração na sociedade brasileira.
Gráfico 1. O seu bairro conta com a oferta de serviços de vigilância privada prestados por policiais de folga?
Fonte: FBSP/Folha de S. Paulo, Instituto Datafolha.
Como explicar que uma atividade ilegal como o bico policial possa ser tão enraizada? A resposta a essa indagação deve ser buscada tanto no lado da demanda por proteção quanto no da oferta. O Brasil tem altas taxas de crimes contra o patrimônio e demanda elevada por proteção. Nesse contexto, os policiais são um ativo valorizado por muitos no mercado de proteção. Podem ser empregados informalmente para prestar serviços de segurança em seu horário de folga sem grandes riscos trabalhistas, afinal, a ilegalidade do bico inibe a busca por direitos trabalhistas. Além disso, os policiais podem oferecer recursos que não estão disponíveis às suas contrapartes privadas (os vigilantes) da mesma forma: o porte de arma (mesmo fora de serviço), o treinamento investido neles, o contato privilegiado com outros policiais e o poder legal para impor a lei. Em conjunto, esses recursos também contribuem para dotar os policiais de poder simbólico, ou seja, a capacidade de serem vistos como portadores de soluções “mágicas” para problemas de segurança.
Os dados da pesquisa indicam que a magia policial encanta principalmente os setores de maior renda. A proporção de pessoas que relatou ter no bairro policiais de folga prestando serviços de segurança é maior entre aqueles que têm renda familiar acima de 10 salários mínimos: diferença de 12.2% na comparação com quem tem renda familiar até 2 salários.
Gráfico 2. Oferta de serviços de vigilância prestados por policiais de folga no bairro x renda familiar dos entrevistados.
Fonte: FBSP/Folha de S. Paulo, Instituto Datafolha.
Pelo lado da oferta, o bico policial na segurança precisa ser entendido à luz do fato de que é uma atividade tacitamente autorizada dentro das polícias. No dia a dia a atividade não é fiscalizada. Impera um controle do tipo alarme contra incêndio, isto é, punições são aplicadas apenas contra casos denunciados ou de grande repercussão. Isso ocorre porque o bico é visto como uma forma legítima – embora ilegal – de os policiais aumentarem seus rendimentos, especialmente nas capitais e regiões metropolitanas, nas quais os custos de vida são mais elevados. De fato, os dados da pesquisa encomendada pelo FBSP ao Datafolha sugerem que o bico é realmente mais prevalente nesses locais (Gráfico 3). Entre os moradores de capitais e regiões metropolitanas, 21% relataram a existência de policiais prestando serviços de segurança em seus bairros, enquanto que, entre moradores de cidades do interior esse número foi de 16%[1].
Gráfico 3. Oferta de serviços de vigilância prestados por policiais de folga no bairro x local de residência dos entrevistados.
Fonte: FBSP/Folha de S. Paulo, Instituto Datafolha
Na prática, existe no Brasil uma política informal que autoriza a participação dos policiais na segurança privada, de modo que possam aumentar seus rendimentos individuais sem que o Estado arque com os custos disso. Ocorre que essa política não exerce nenhum controle público sobre essa participação e traz diversas consequências indesejáveis.
Consequências do bico policial na segurança privada
O bico policial na segurança privada compromete a qualidade dos serviços de segurança pública, criando conflitos de interesse, aumentando o estresse do policial e seu risco de vitimização. No bico os policiais costumam trabalhar sem a retaguarda de outros policiais, sem uniformes e equipamentos de proteção adequados, tornando-se assim mais vulneráveis a confrontos letais com criminosos. Esse é um dos motivos pelos quais os policiais brasileiros são mais vítimas de violência letal intencional fora de serviço do que no serviço. Em 2023, por exemplo, 60% dos policiais civis e 57% dos policiais militares vítimas de violência letal intencional foram mortos no horário de folga (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2024).
Por comprometer as horas de descanso e lazer, o bico também acarreta consequências para a saúde mental dos policiais. Ele é um estressor adicional que impacta diretamente a vitimização por suicídio, que em 2023 foi a principal causa de morte de policiais no Brasil, superando as mortes por confronto na folga e por confronto no serviço (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2024).
O bico policial também prejudica o setor regular de segurança privada, que tem que enfrentar a concorrência predatória de organizações informais de policiais. Como essas organizações se apropriam de recursos públicos que são usados para fins privados e não seguem as regras trabalhistas e do setor de segurança privada, podem praticar preços contra os quais as empresas de segurança não conseguem concorrer.
A pesquisa também permite sustentar uma outra consequência do bico policial: a difusão da violência policial e a descaracterização da segurança privada como uma atividade eminentemente preventiva. Seguranças particulares não dispõem dos poderes coercitivos de imposição da lei que é disponibilizado aos policiais. Assim, não buscam aplicar a lei e prender criminosos. Buscam gerenciar riscos e antecipar situações que podem ocasionar problemas de segurança. Agem de maneira preventiva e realizam um policiamento mais consensual[2].
Ocorre que a penetração dos policiais no universo da segurança privada pode fazer com que esse estilo de policiamento característico da segurança privada ceda espaço a um policiamento mais repressivo. Os dados apontam na direção dessa hipótese. Pessoas que relatam haver no bairro policiais prestando serviços de vigilância privada no horário de folga têm uma chance 45% maior de ter presenciado ou ter sido vítima de violência policial. Conforme gráfico 4, a probabilidade de essas pessoas terem presenciado ou sofrido violência policial é de 19%, enquanto que os que disseram não ter no bairro policiais prestando serviços de segurança é de 14% (gráfico 4).
Gráfico 4. Probabilidade de uma pessoa presenciar ou sofrer violência policial (em %).
Fonte: FBSP/Folha de S. Paulo, Instituto Datafolha
Ao atuar na segurança privada, os policiais levam da sua organização não apenas a arma de fogo e as redes de contato. Levam também a sua maneira de pensar e promover a segurança, que é orientada pela ideia de guerra ao crime e de uso da violência como mecanismo de controle social. Assim, uma outra consequência da atuação ilegal de policiais na segurança privada é a ampliação da violência policial. Daí a associação entre percepção de bico policial e violência policial captada pela pesquisa do FBSP e da Folha de S. Paulo com o Datafolha.
Embora o emprego ilegal de policiais em atividades de segurança privada seja uma demanda de parte da sociedade, uma atividade economicamente vantajosa para os policiais e politicamente conveniente para as autoridades da área de segurança pública, ele traz várias consequências indesejáveis para a área de segurança e para a sociedade. Assim, o bico policial é um problema que precisa estar na agenda brasileira da área de segurança pública.
Referências
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2022. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 16, 2022. ISSN 1983-7364.
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. ISSN 1983-7364.
LOPES, C. da S. Segurança privada e direitos civis na cidade de São Paulo. Sociedade e Estado, v. 30, n. 3, p. 651–671, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69922015.00030004. Acesso em: 2 ago. 2024.
OLIVEIRA, P.; PAES-MACHADO, E. Itinerant Bubbles: hybrid carnival security and privatisation of public spaces. International Journal of Comparative and Applied Criminal Justice, v. 46, n. 1, p. 31–48, 2021. Disponível em:
Anexo
Tabela1: Modelo de regressão logística sobre violência policial percebida ou sofrida.
[1] Policiais trabalhando como seguranças em horários de folga são mais facilmente identificáveis em cidades menores onde as relações sociais são mais pessoais. Isso introduz um viés que infla os dados de percepção do bico policial no interior na comparação com capital e região metropolitana. Mesmo assim, os dados da pesquisa FBSP/Datafolha captam maior percepção do bico policial nas capitais e regiões metropolitanas, o que realmente sugere a maior prevalência do fenômeno nessas localidades.
[2] Isso não quer dizer que a atuação de seguranças não desafia a cidadania. Seus poderes são diferentes dos poderes dos policiais, mas amplos o suficiente para violar em massa direitos civis. A esse respeito, ver Lopes (2015).
Nota: Probabilidade estimada com base em regressão logística, que incluiu outras variáveis potencialmente capazes de explicar a violência policial, como renda, local de residência, sexo, idade e cor (ver anexo). Isso significa que o efeito relatado no gráfico reflete a influência específica da variável que mede a existência de bico policial no bairro e a variável que mede a violência policial. Violência policial é uma variável resultante da combinação das respostas “Sim” às seguintes perguntas feitas pelo Datafolha (últimos 12 meses) “Você presenciou uma abordagem violenta por parte da Polícia Militar?”; e “Foi vítima de violência ou agressão por parte das Polícias Civil ou Militar?
CLEBER LOPES - Professor da Universidade Estadual de Londrina e Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS).
fontesegura.forumseguranca.org.br | (Edição nº 245)
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