Nas últimas semanas, o governo federal anunciou uma proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre segurança pública, sugerindo ideias interessantes para fortalecer o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e facilitar uma maior integração entre as polícias. Um ponto, porém, gera preocupação: a fusão de dois fundos centrais no âmbito do Ministério da Justiça, o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).
A unificação desses fundos tem o potencial de reduzir as verbas destinadas às políticas penais e sobrefinanciar medidas relacionadas ao policiamento. A segurança pública ocupa uma posição central na agenda política nacional, sendo apontada pela população como o segundo maior problema do país. Esse foco político geralmente tem sido acompanhado de crescentes alocações orçamentárias, especialmente no âmbito do FNSP.
Atualmente, esses efeitos são menos intensos no âmbito penal devido à segregação de recursos proporcionada pela existência de um fundo separado, o Funpen. Nos últimos três anos, os repasses oriundos do FNSP ultrapassaram R$ 1 bilhão anualmente. No mesmo período, o Funpen alocou, em média, menos da metade desse valor (R$ 485 milhões).
A criação do Funpen, em 1994, foi motivada pela necessidade de mais investimentos para enfrentar os crescentes problemas de superlotação, rebeliões e mortes. Desde então, esse fundo tem sido uma importante fonte de financiamento para a administração dos serviços penais, especialmente para os estados que destinam poucos recursos próprios ao setor.
Embora o Funpen capte recursos consideráveis, por muitos anos até 80% desses valores foram contingenciados. Contudo, em 2015 uma decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 347 determinou que os recursos represados fossem utilizados para responder ao “estado de coisas inconstitucional” das prisões brasileiras. A decisão foi operacionalizada no ano seguinte, quando uma medida provisória permitiu o repasse de R$ 1,12 bilhão aos estados, no maior descontingenciamento para políticas penais da história. Desse total, 71% dos valores repassados foram destinados à construção de novos presídios, segundo um relatório federal.
Aos poucos, contudo, o Funpen vem deixando de ser um fundo centrado na construção de presídios. Novas modalidades de financiamento foram incorporadas na lei, incluindo alternativas penais, programas de reintegração de presos e egressos e medidas para a redução da população carcerária. Paralelamente, a ideia de que o Fundo pode ser utilizado além das penitenciárias tem ganhado força na gestão federal atual. O antigo Depen (Departamento Penitenciário Nacional) foi reformulado e passou a se chamar Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).
A noção de “políticas penais” expande o conceito ao pluralizar o termo e priorizar uma agenda nacional que vai além das penitenciárias, abrangendo um campo mais amplo da justiça criminal, como medidas alternativas, atenção à porta de entrada do sistema, monitoramento eletrônico e ações de apoio pós-soltura, fundamentais para inibir a reincidência. O Brasil segue uma tendência global de expandir os esforços no campo prisional. No âmbito das Nações Unidas, o Escritório sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) é o principal órgão atuante nesse tema, e denomina essa área de intervenção como “reforma prisional e penal”.
O Funpen possui um papel fundamental no potencial de transformar o sistema penal, ao financiar iniciativas que transcendam a construção de prisões e concentrem na redução da recidiva, ao evitar encarceramento desnecessário. Entretanto, os recursos destinados a essas ações têm sido limitados nos últimos anos, especialmente após o significativo descontingenciamento ocorrido em 2017.
Já o FNSP foi criado em 2000, em resposta a demandas por maior engajamento federal para auxiliar os estados em uma área que se agrava com o aumento da violência e da criminalidade organizada. O montante repassado pelo FNSP aos estados tem crescido significativamente, de R$ 765 milhões em 2019 para R$ 1,084 bilhão estimado para 2024.
A combinação de mais crimes e maior investimento em aparelhamento policial tem resultado no aumento da população carcerária, levando o país a ocupar o 3º lugar no ranking mundial. O crescimento no número de pessoas presas, por sua vez, também afeta a segurança pública, considerando a elevada reincidência de pessoas que saem das prisões e retornam a um contexto social desfavorável, com baixa qualificação educacional e profissional, e enfrentando grave estigma. A tendência de crescimento carcerário agrava o descompasso já existente no financiamento, o que pode se intensificar com a absorção do Funpen pelo FNSP.
Se mesmo com o Funpen há uma escassez de investimentos destinados a políticas penais, cabe questionar se não haveria uma redução ainda maior caso os fundos fossem unificados sob um manto mais amplo caracterizado pela segurança pública. Apesar das dificuldades atuais na execução, a segregação das fontes de recursos para políticas penais é uma salvaguarda para evitar decisões imediatistas e responsivas a uma dinâmica eleitoral de curto prazo. O investimento nas forças policiais tende a ser constantemente privilegiado em detrimento de verbas necessárias para lidar com os efeitos do policiamento e do encarceramento, bem como para prevenir a recidiva criminal.
Integrar ações mantendo a segregação das fontes de financiamento parece ser um caminho desejável. Enquanto a proposta da PEC ainda está em desenvolvimento, recomendamos lembrar o alerta do cartunista Quino: “O urgente nunca deixa tempo [ou recursos] para o importante”.
RAFAEL BARRETO SOUZA - Pesquisador no Laboratório de Gestão de Políticas Penais da Universidade de Brasília - LabGEPEN/UnB.
fontesegura.forumseguranca.org.br | (Edição nº 245)
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