ARTICULISTAS SETEMBRO AMARELO
UMA GENTE QUE NÃO VIVE, APENAS AGUENTA
Algo muito errado estamos fazendo quando os nossos mais jovens, sobretudo os que integram a população negra brasileira, sequer chegam a projetar o amanhã, que a eles igualmente pertence.
28/09/2024 22h48
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br | (Edição nº 245)

O direito à vida é juridicamente protegido em diversas frentes na legislação brasileira. No recorte da Justiça Criminal, temos um capítulo no Código Penal dedicado à proteção da vida, que inclui, entre outras, a tipificação do homicídio, do feminicídio, do infanticídio e do induzimento, instigação ou auxílio a suicídio. Contudo, é inegável que, para a normativa vigente, a vida é quase que um sinônimo de integridade física. Escapam da taxatividade da lei a beleza, a complexidade e mesmo as exigências de uma humanidade que dialoga, para ser digna de ser vivida, com o pertencimento social.

Aqui quero falar justamente do que a lei não alcança e da urgência de repensarmos os contornos da materialização da igualdade, inclusive no campo da segurança pública.

Para começo de conversa, segurança pública não se resume à atuação das forças policiais. Concebê-la como um direito social implica dar respostas concretas à demanda por direitos civis, por direitos econômicos e culturais – e é da intersecção deles que a cidadania se nutre.

Pedro Henrique, 14 anos, negro, gay e periférico, bolsista de uma das prestigiosas escolas de elite de São Paulo, não se viu parte. Cometeu suicídio, abreviando, ao que os fatos públicos indicam, uma trajetória de sofrimento. Mais um adolescente que não encontrou guarida nas instituições, que, indiferentes à dor semeada pelo desrespeito sistemático, impuseram  uma exigência de resistência, sem oferecer quaisquer ferramentas para isso.

O que temos a olhos vistos, quando a homofobia, o racismo, o classismo e o bullying perpetuam, sem que sequer a provocação formal do sistema de justiça e de segurança pública tenha sido feita? Respondo – a reafirmação de uma estrutura excludente e completamente apartada das demandas reais. Nesse caso concreto – e é bom ter presente de que se tratou de um adolescente – é razoável supor e esperar que os adultos ao redor deveriam ter atuado para assegurar acolhida e proteção.

O contra-argumento de que “é assim mesmo” prospera sem constrangimentos. Afinal, já não são notórios o racismo e a desigualdade estruturais? O que mais querem os defensores de direitos, aquela turma dos direitos humanos?

Ora, é evidente que é importante a transposição do obstáculo do acesso a espaços de poder – e aqui cabem a chegada de alunas e alunos negros na escola de elite, na universidade pública, de mulheres e homens negros nos empregos e cargos de prestígio. No entanto, a permanência em espaços sociais hostis à igualdade de direitos não pode seguir como algo que fica só a cargo do interessado, em sobreviver aos percalços do caminho. Nessa toada, a conta da resiliência só aumenta e a meritocracia agradece.

Na normativa vigente, racismo e homofobia não estão diretamente relacionados ao direito à vida. Mas não há dúvida de que de vida aí se trata – de vida que clama por reconhecimento, por respeito e pela convivência com o diferente. Por isso, a compreensão de que questões estruturais podem servir de justificativa para a inação só serve para uma agenda avessa à isonomia. Desse modo, não é extrapolar competências e não é exigir demais que as instituições se impliquem na construção, no acesso e na fruição de direitos.

Também se morre de vida não vivida. De ser cotidianamente desrespeitado. De instituições cerradas para a igualdade. Da igualdade resumida no franqueamento ao acesso. Da distorção sobre o que é a fruição equânime de direitos. Daí a necessidade de falarmos de permanências.  A sobrevivência não basta. Para uma sociedade de maioria negra, a violência, seja física, seja simbólica, quantas vezes inominada, só escreve histórias de dor e de sistemáticos apagamentos.

Em uma vida boa, é certo que cabem sonhos de futuro. Algo muito errado estamos fazendo como coletivo quando os nossos mais jovens, sobretudo os que integram a população negra brasileira, sequer chegam a projetar o amanhã, que sim, a eles igualmente pertence.

JULIANA BRANDÃO - Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

fontesegura.forumseguranca.org.br | (Edição nº 245)

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