As polícias brasileiras desempenham função essencial na garantia da lei e da ordem, mas será que prestam serviço público de segurança? A concepção de segurança pública engendrada nas corporações se adéqua ao conceito de serviço público? É curioso. As corporações e seus integrantes se vangloriam de exercerem funções típicas de Estado, mas, por outro lado, ainda pouco se veem como órgãos estatais de prestação de serviço público voltado ao atendimento de interesses dos cidadãos. Ademais, os próprios governantes das mais variadas esferas impelem suas polícias para a estratégia da guerra contra o crime, em vez de promover serviço público de segurança.
Todavia, o que seria um serviço público na área de segurança? Em geral, por serviço público se podem entender as atividades desempenhadas pelos órgãos estatais, direta ou indiretamente, em prol da sociedade e na busca do bem comum. Na segurança pública, o sentido de serviço público não seria diferente, visto que o objetivo também é proporcionar benefícios para a coletividade por meio de policiamentos preventivos e investigativos, elucidações e crimes, aplicação de lei, administração de conflitos. No entanto, no imaginário e na prática das polícias a finalidade delas não é necessariamente a prestação de um serviço público e sim de combate ao crime.
Há diferenças entre enfrentamento do crime e prestação de serviço público de segurança. A distinção básica é que a garantia da segurança pública engloba o tratamento da criminalidade e não vice-versa. Ou seja, um serviço de segurança pública não pode se restringir às atividades policiais, por mais que elas sejam essenciais. Nesse aspecto, a questão fundante é compreender que a criminalidade não é fenômeno isolado, pois está inter-relacionada com fatores culturais, econômicos, históricos, sociais, territoriais. Com efeito, um adequado serviço público de segurança deveria ser capaz de compreender as dinâmicas das conflitualidades e reivindicar resoluções que contemplem a paz social.
Destaca-se que os problemas com a falta de segurança afetam frações específicas de certas populações e territórios. Além do mais, a depender dos tipos de ilícitos, as características se segmentam ainda mais e são direcionadas para nichos populacionais determináveis. Isso quer dizer que a possibilidade de um indivíduo ser vítima de certo tipo de crime não é necessariamente uma loteria, mas possui possíveis relações com as características pessoais dele, a posição socioeconômica que ocupa, a região em que se encontra. Diante disso, observa-se que a oferta de um serviço público de segurança é atividade complexa e multifacetada que dificilmente se resolva com tiro, porrada e bomba.
Por isso, a insegurança é uma questão pública para além das vítimas imediatas da criminalidade, porquanto ela gera repercussão negativa que ecoa na sociedade. Diante disso, em várias pesquisas de opinião é possível ver o tema da falta de segurança ou criminalidade figurando como uma das principais preocupações dos brasileiros, concorrendo com outros temas como receio de desemprego e de doenças. Para tratar desse dilema público, a resposta mais usual de governantes tem sido a promoção de políticas duras, penalizações e de policiamento repressivo. Uma das consequências disso é que, em regra, as polícias focam no evento criminalidade e não na prestação do serviço público de segurança.
As estratégias de guerra ao crime propaladas por governantes e executadas por polícias infelizmente partem de visão reducionista sobre a criminalidade, inclusive sobre a própria segurança pública. Assim, o serviço público de segurança vigente se limita a manter a ausência da criminalidade e a função das polícias seria basicamente o controle de delitos e delinquentes. Entretanto, um serviço de segurança pública adequado, além de garantir a incolumidade das pessoas, deveria ser espaço para valorização de direitos fundamentais e exercício de cidadania. Nesse contexto, o papel das corporações não ficaria restrito ao fenômeno da criminalidade, mas se ampliaria para a busca de uma segurança cidadã e humana, na qual se fomentariam o bem-estar das pessoas e a defesa dos direitos dos cidadãos.
Particularmente para as corporações civis e militares estaduais, que lidam diretamente com dilemas de cidadãos no cotidiano das cidades, a visão de serviço público precisa ser ressignificada. Ora, as polícias ainda possuem compreensões insuladas sobre segurança pública, como já discutido muito na lógica da guerra ao crime, na manutenção da lei e da ordem. Porém a concepção de serviço público defendida aqui implica ampliar a área de segurança, sobretudo reposicionando a cidadania como o principal objeto da proteção estatal proporcionada pelas polícias.
Desse modo, o serviço público de segurança deveria (re)conquistar a confiança cidadã nos órgãos policiais. Na condição de serviço público, as corporações forneceriam segurança com ênfase nos cidadãos, conforme atributos populacionais, socioeconômicos, culturais, territoriais. Esse serviço de caráter público teria o potencial de retirar cidadãos precarizados e discriminados da influência do crime organizado, das milícias, dos mercados ilegais. Trata-se, em suma, de redimensionar a capacidade estatal no campo da segurança pública.
Para tanto, as corporações na prestação de serviço público de segurança deveriam ser estruturadas para se tornarem agências defensoras e promotoras de cidadania, visto que possivelmente são a face mais presente do Estado em muitas cidades, bairros, localidades, ruas. Logo, as delegacias e os postos policiais, como órgãos públicos, não poderiam ser locais de medo e desesperança, porém ambientes da estruturação de direitos roubados, de ajustes de conflitualidades, do enfrentamento de injustiças. Assim, a polícia e seus integrantes deixariam a imaginada postura de heróis para se postarem como prestadores efetivos de serviço público.
Enfim, o ideal de serviços públicos como direitos de cidadania vem se consolidando com a democratização em várias áreas, como assistência social, educação, saúde, trabalho. Porém, no campo da segurança pública ainda predomina a concepção enviesada de que as polícias são forças à disposição para lutar numa guerra contra o crime, em vez de órgãos públicos para garantia de segurança com cidadania e respeito à dignidade humana. Por conseguinte, convém ressignificar as estruturas da segurança pública, em especial as polícias, para que constituam um serviço público voltado aos cidadãos, sobretudo os mais necessitados, excluídos, marginalizados.
ALEXANDRE PEREIRA DA ROCHA - Doutor em Ciências Sociais. Policial Civil do Distrito Federal. Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
fontesegura.forumseguranca.org.br | Edição nº 246
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