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Além de cega, a Justiça apresenta deficiências

Tratamento conferido a surdo profundo em episódio ocorrido na Região Metropolitana de Belém mostra o direito se realizando como mero instrumento de poder mantenedor de processos históricos de sujeição.

Carlos Nascimento
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br | Edição nº 246
28/09/2024 às 23h18
Além de cega, a Justiça apresenta deficiências

Apesar de a Constituição Federal (Brasil, 1988) consagrar, há mais de 30 anos, a igualdade entre os cidadãos e a necessidade de práticas impessoais na prestação do direito processual (e da própria justiça) aos jurisdicionados, as discriminações que ocorrem neste (e noutros campos) são inquestionáveis.

Além disso, pode-se dizer que as violências processuais (Reis Netto et al, 2018) a que os jurisdicionados são sujeitos detêm, ainda, caráter cumulativo, que se agrava à medida que aspectos como cor, condições sociais, locais de moradia e limitações físicas e intelectuais se somam.

Prova disso foi uma experiência vivida pelo pesquisador cuja assinatura foi colocada mais acima neste texto, em sua prática como oficial de justiça avaliador – profissional responsável pelo cumprimento de funções públicas que se estendem desde comunicações, nem sempre muito simples, até medidas constritivas do patrimônio ou liberdade, o que levou à presente reflexão conjunta.

O que seria uma citação comum – ato pelo qual um requerido ou acusado é integrado ao processo que sofre – revelou um conjunto de problemas inerentes ao sistema. O acusado, diagnosticado com surdez profunda e com severas dificuldades para se comunicar, teria, como única forma de comunicação, a LIBRAS, a linguagem brasileira de sinais.

O caso do jovem (pardo, de baixa instrução e morador de um bairro periférico da Região Metropolitana de Belém – RMB) surgiu de um desentendimento com sua companheira, também com surdez profunda e igualmente com grandes limitações para se comunicar. A briga familiar desembocou em agressão mútua. Sob intervenção de vizinhos, o acusado e sua companheira foram apresentados pela Polícia Militar à Polícia Civil, que o prendeu em flagrante por violência doméstica e lesão corporal, deixando de coletar seu depoimento e da vítima, por incapacidade comunicativa. Foram ouvidos apenas os policiais militares.

A partir dos documentos formais, deduzimos que nenhuma providência foi tomada em relação à incapacidade comunicativa. Igualmente, nada se fez em audiência de custódia, na qual a linguagem foi intermediada pela genitora do acusado – ao tempo, a única pessoa capaz de compreendê-lo e expressar sua vontade. O aprisionado foi colocado em liberdade provisória. O casal reatou o relacionamento e, atualmente, tem dois filhos (dentre os quais, um bebê de dois meses).

O fato gerou um inquérito, e este, uma ação penal. Em ambos, novamente, as deficiências não foram mencionadas nos documentos produzidos. A denúncia foi recebida pelo juiz, e a citação, expedida. Por ironia do destino, o mandado foi distribuído ao primeiro pesquisador.

Ao buscar o requerido, noutra cidade, teve a notícia da recomposição familiar e mudança para uma terceira cidade da RMB. De pronto, veio a advertência: não adiantaria telefonar, pois o acusado era surdo. A tentativa de contato foi por meio de mensagem.

O retorno foi por mensagem de vídeo. O acusado tentava se comunicar por LIBRAS. Porém, o pouco conhecimento sobre o tema pesou ao oficial. O total desconhecimento sobre termos técnicos em LIBRAS, mais ainda! Foi pedida ajuda a uma vizinha. Horas depois, a genitora do acusado, do Mato Grosso, entrou em contato. Explicado o ocorrido, a mãe foi peremptória: o filho dependia de um intérprete para comunicação, como o oficial já havia constatado.

A solução: optou-se pelo não cumprimento da citação! Afinal, a incapacidade comunicativa refletia a própria incapacidade relativa do acusado (art. 3º, III, do Código Civil, aplicável ao processo penal) (Brasil, 2002). Determinou-se, porém, que o acusado buscasse a defensoria de seu município.

O revés: a defensoria, após solicitar atendimento por aplicativo de mensagens (como se 30% da população ainda não estivesse alijada de acesso à rede e outros não se configurassem como analfabetos digitais), o encaminhou para o Fórum local. Horas depois, a mãe do acusado contatou o oficial informando que o filho, mesmo sem entender nada, fora citado pelos servidores da secretaria criminal. O oficial explicou que a certidão havia sido detalhada quanto à capacidade relativa e que isso deveria ser levado em conta (espera-se, aliás, que o documento seja, realmente, lido!).

Sem que se pretenda o atenuamento da culpa pela violência doméstica, tem-se que, desde o início do caso, a justiça – cega como é – foi conduzida de forma imprópria pelos atores do sistema judiciário, que, diante da ausência de competências e habilidades para tratar o problema, preferiram empurrar o processo para frente, sem se preocupar com o devido processo legal.

Mas também se deve atenuar a culpa destes: a formação, eminentemente jurídica e pouco humanística, somente em tempos mais recentes passou a prever, também residualmente, formações voltadas ao atendimento de públicos vulneráveis.

Os demais pesquisadores (a segunda autora, atuante na saúde do sistema penitenciário, e os demais, professores do ensino superior) inclusive reconheceram as limitações de seus respectivos âmbitos de atuação quanto à formação de competências no mesmo sentido.

O problema se agrava, mais ainda, num contexto em que controles externos são exercidos entre os órgãos de maneira meramente repressiva, sem a presença de indicadores qualitativos que levem em conta as intempéries reais, vividas por cada órgão/servidor, como se todas as unidades do país funcionassem de maneira igualmente ideal.

Some-se tudo e surgirá a violência processual destacada por Reis Netto et al (2018) há tempos. Neste contexto de violências objetivas certamente são as populações mais pobres e limitadas que sofrerão a violência que surge como um conjunto de sujeições, propositadas ou não, de todo o sistema judiciário.

Embora o texto fale de um surdo, a questão vai além: a maior surdez observada diz respeito ao processo, que simplesmente ignorou as condições materiais de sua realização e seguiu em busca de uma provável condenação, para cumprimento de metas.

A justiça, cega como é, seguiu os passos daqueles que a conduziram. Estes, como humanos, reproduziram o direito a partir de seu local de fala, bem como sua (limitada) forma de compreender os fenômenos materiais. Da feita que a formação jurídica ignorou os aspectos humanísticos, o direito se realizou como um mero instrumento de poder mantenedor de processos históricos de sujeição (Foucault, 2015). Afinal, se o diálogo não permitir a integração pela comunicação, pontes deixam de ser construídas e os interlocutores, como é típico em ações violentas, passarão a gritar entre si, dos diferentes lados de um abismo social.

De outro lado, deve-se reconhecer a existência de iniciativas relevantes no seio do próprio TJPA: cursos (opcionais) para tratar de públicos vulneráveis; iniciativas levando em conta os usos do legal design em mandados e sua integração a apps, com futura integração à LIBRAS, entre outros. Porém, enquanto estas ainda compuserem contextos isolados, o restante do processo, sobretudo, o criminal, ainda consubstanciará violências desde a imputação primária, numa bola de neve que só se agravará ao longo da instrução. Em verdade, as iniciativas ideais deteriam natureza integrada, para além do judiciário.

Se a justiça já é cega, não se pode permitir que também seja acometida pela surdez às súplicas por contraditório e ampla defesa, e, mais ainda, que se torne muda diante de violências consolidadas pelos próprios ritos processuais, inadequados para tratar as diferenças.

Do contrário, a justiça será relativamente – ou absolutamente – incapaz, na forma da lei. Como tal, acabará por sofrer intervenções – rogadas de maneira irresponsável por desconhecedores da democracia ou por debatedores de má-fé – e será colocada em algum abrigamento contrário a sua vontade, como ainda são tratados os diferentes.

A justiça também tem necessidades especiais. (Re)conhecê-las, certamente, é o primeiro passo para garantir a transmutação do direito, de um instrumento de controle social (Foucault) para algo maior, que ainda não somos capazes de compreender.

REFERÊNCIAS BRASIL.

Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. 1988.

__. Lei N. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. 2002. FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2015. REIS NETTO, R. M.; MIRANDA, W. D.; SANTOS, L. R. L.; BRASIL, S. N. L. É possível falar de violência processual? In: SANTOS, L. R. L.; REIS NETTO, R. M.; PESSÔA, R. M.; CAÑETE, T. M. R.; MIRANDA, W. D.; SANTOS, I. R. Direito público e privado no século XXI. Ananindeua: Edições dos Autores, 2018.

ROBERTO MAGNO REIS NETTO - Doutor em Geografia (com ênfase em segurança pública). Mestre em Segurança Púbica. Oficial de Justiça Avaliador do TJPA. Professor (IESP). Pesquisador (LABGEOVCRIM/UEPA e Érgane – pesquisadores da Amazônia). Mentor.

CLARINA DE CÁSSIA DA SILVA CAVALCANTE - Especialista em Atividade de Inteligência. Técnica da Secretaria de Administração Penitenciária do Pará.

CLAY ANDERSON NUNES CHAGAS - Doutor em Desenvolvimento Socioambiental. Mestre em Desenvolvimento Sustentável. Professor e Reitor (UEPA). Pesquisador (Líder do LABGEOVCRIM/UEPA).

WANDO DIAS MIRANDA - Doutor em Desenvolvimento. Mestre em Ciência Política. Professor (UEPA/IESP).

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