O arranjo federativo brasileiro vigente desde a Constituição de 1988 caracteriza-se pela autonomia e complementariedade entre os entes federados, isto é, a União, os 26 estados e o Distrito Federal, e os municípios, dando a cada ente certa possibilidade de definir o destino dos recursos orçamentários, de formular legislações específicas e de tomar decisões locais.
Essa corresponsabilização consolidou-se em diversas políticas públicas, com destaque para a saúde, a educação e a assistência social. A distribuição de responsabilidades entre União, Estados e Distrito Federal e municípios também vem ganhando força na política de segurança pública, especialmente após a aprovação da Lei 13.675, de 11 de junho de 2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública e criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.
Ainda que a criação do SUSP carregue em si uma narrativa de privilegiar ações de prevenção às violências, priorização de ações para grupos vulnerabilizados e resolução pacífica de conflitos, no campo criminal tanto as instituições como os saberes populares operam por meio de uma identificação entre punição e prisão, sendo esta a forma proeminente de se compreender a ação da “justiça”. Nesse percurso, o modelo institucional e as organizações dele decorrentes no campo da justiça criminal enredaram-se na forma de atribuições e competências para a União, estados e Distrito Federal, com nenhuma previsão legal de responsabilidades para os municípios.
Assumindo, porém, uma perspectiva que considera a responsabilização penal como um campo específico das políticas públicas, na qual se entrelaçam políticas sociais, políticas de segurança pública e a justiça criminal, a política penal compreende um conjunto de medidas e serviços que se voltam à racionalização da porta de entrada do sistema de privação de liberdade, à qualificação da execução das penas, ao fomento de ações e serviços na porta de saída e à formação de quadros e carreiras de servidores especializados para a atuação com diferentes públicos e nas diferentes fases de seu ciclo.
Nessa perspectiva, nem a atuação estatal no campo da política penal se restringe à pena privativa de liberdade, nem o arranjo interfederativo, para sua execução, cabe apenas à União e aos entes estaduais, devendo também os municípios reconhecer e incidir para a promoção de direitos das pessoas alcançadas pelo sistema de justiça criminal e de seus familiares.
Tendo em vista as eleições municipais que se aproximam, retomamos aqui algumas propostas já lançadas no âmbito do Laboratório de Gestão de Políticas Penais[1] e que apontam para possibilidades de incidências dos municípios para a promoção de direitos no campo das políticas penais, contribuindo com uma cidade mais segura e inclusiva. Para isso, listo abaixo cinco ações prioritárias que podem ser promovidas por governos municipais comprometidos com a Democracia e os Direitos Humanos:
1. Promover acesso às políticas de saúde, educação, trabalho, habitação, assistência social e cultura mediante o estabelecimento de fluxos como o sistema de justiça criminal e as respectivas instâncias municipais de promoção dessas políticas;
2. Criar as Centrais Integradas de Alternativas Penais, a fim de garantir o atendimento e acompanhamento das pessoas em alternativas penais no município, a partir de parcerias com a esfera estadual e a União;
- Implantar serviços especializados de atenção às pessoas egressas do sistema prisional, tal como o Escritório Social, aderindo ao Decreto 11.843, de 21 de dezembro de 2023, que instituiu a Política Nacional de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional;
1. Incluir a participação das pessoas em cumprimento de alternativas penais e pessoas egressas do sistema prisional em instâncias de participação social;
2. Reconhecer os estabelecimentos prisionais como instituições sujeitas à fiscalização por órgãos municipais competentes, como a vigilância sanitária, monitorando um olhar atento à população privada de liberdade presente no território e estabelecendo sua intersetorialidade com as diversas políticas públicas.
A adoção destas medidas pode ainda ser cofinanciada por meio da criação do Fundo Municipal de Serviços Penais, o qual está previsto na Lei nº 13.500/2017, tendo por finalidade financiar a implementação e manutenção de diversos projetos vinculados às políticas penais, com destaque para as alternativas penais e atenção às pessoas egressas.
Numa eleição em que a segurança pública tem sido assunto central nos debates e campanhas eleitorais, dirigir a atenção para medidas que se contraponham ao discurso fácil do combate ao inimigo e que compreendam a responsabilização penal como ação de promoção e garantia de direitos pode nos permitir encontrar saídas mais sofisticadas para problemas que são muito mais complexos do que o simples recurso às armas e ao fortalecimento das polícias.
[1] O documento completo pode ser acessado AQUI:
FELIPE ATHAYDE LINS DE MELO - Doutor em Sociologia; membro do Laboratório de Gestão em Políticas Penais.
fontesegura.forumseguranca.org.br | Edição nº 246
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