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A PROLIFERAÇÃO DE ARMAS NO BRASIL: VIOLÊNCIA, MASCULINIDADE E CONFLITOS – a importância de um programa de recompra

É crucial que o governo federal implemente com urgência um novo programa com o objetivo de retirar o máximo possível de armas de circulação e reduzir os impactos da política de armamento promovida recentemente. A recompra de armas não deve ser vista como gasto, mas como investimento que pode salvar milhares de vidas.

24/11/2024 às 21h08 Atualizada em 24/11/2024 às 21h19
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 251.
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A PROLIFERAÇÃO DE ARMAS NO BRASIL: VIOLÊNCIA, MASCULINIDADE E CONFLITOS – a importância de um programa de recompra

A partir de 1980, a violência armada no Brasil começou a crescer de forma contínua, culminando em 2017 com mais de 44 mil mortes causadas por armas de fogo. Apesar de uma ligeira redução nos anos seguintes, o cenário permanece preocupante, com 33 mil homicídios registrados em 2022. Em 1980, 43,9% dos homicídios estavam associados ao uso de armas de fogo, proporção que aumentou progressivamente até atingir 72,4% em 2017, mantendo-se acima de 70% nos anos subsequentes[i]. Esses números alarmantes refletem a permanência de uma rede complexa de fatores sociais, econômicos e culturais que perpetuam o ciclo de violência armada no país.

Comparativamente, as taxas de homicídios por armas de fogo no Brasil são muito mais elevadas do que em outros países. Com um índice de 15,4 homicídios por 100.000 habitantes, o Brasil apresenta uma taxa cinco vezes maior que a dos Estados Unidos e cerca de 150 vezes superior à de nações de alta renda[ii]. Em 2020, o Brasil foi responsável por 20,4% dos homicídios globais, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)[iii]. Em 2021, 91,3% das vítimas de homicídios por armas de fogo eram homens. Esses números não apenas evidenciam a gravidade da violência armada no Brasil, mas também revelam a discrepância em relação ao cenário internacional, reforçando a urgência de políticas eficazes de prevenção e intervenção[iv].

Um dos principais obstáculos para enfrentar essa violência é a baixa taxa de resolução de homicídios no Brasil, o que dificulta a identificação dos autores e, por consequência, impede a formulação de estratégias mais eficazes para o enfrentamento do problema. O sistema investigativo do país permanece defasado e pouco modernizado, mantendo práticas burocráticas que datam do início do século passado. Embora algumas polícias tenham feito esforços para digitalizar procedimentos, essas mudanças frequentemente são mais cosméticas do que estruturais, perpetuando a sensação de impunidade e contribuindo para a continuidade dos altos índices de criminalidade.

Ao discutir a violência armada no Brasil, é essencial compreender a dinâmica da circulação de armas de fogo no país. Isso passa por entender quem são os indivíduos que buscam adquirir armas, os motivos que os levam a isso e para onde essas armas estão indo. Contudo, essa tarefa enfrenta grandes desafios, a começar pelo difícil acesso a dados confiáveis que possam fornecer essas respostas. Embora a Lei de Acesso à Informação tenha melhorado esse cenário, muitas vezes os dados fornecidos são difíceis de interpretar, exigindo mais tempo para compreendê-los do que para a realização da pesquisa em si. Mesmo assim, estudos e trabalhos como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública são fundamentais para preencher parte dessa lacuna e oferecer uma visão mais detalhada da situação.

A posse de armas de fogo no Brasil, predominantemente concentrada entre os homens, está intimamente relacionada à identidade de gênero e à construção da masculinidade. Estudos sugerem que, para muitos homens, possuir uma arma é uma forma de expressar poder, controle e força, atributos frequentemente associados à masculinidade hegemônica. Esses símbolos de poder não só refletem a capacidade de autodefesa, mas também uma percepção de superioridade em relação aos outros, especialmente em relação às mulheres[v]. Pesquisas empíricas indicam que a posse de armas está associada a um perfil específico: homens brancos, conservadores politicamente e aderentes a normas sociais que privilegiam a violência e a dominação masculina[vi].

Embora a violência armada seja predominantemente uma questão masculina, as mulheres não estão imunes aos seus efeitos devastadores. O feminicídio é um exemplo trágico de como as armas de fogo intensificam a violência de gênero, especialmente em contextos domésticos. A presença de armas em lares onde ocorrem conflitos aumenta significativamente o risco para as mulheres, tornando-as mais vulneráveis à violência letal. Além disso, as consequências emocionais e financeiras da perda de um companheiro ou filho por homicídio também recaem sobre as mulheres, perpetuando um ciclo de dor e vulnerabilidade que afeta profundamente suas vidas.

Estudos realizados por Keinert (2006)[vii] e Santos (2021)[viii] revelam que a posse de armas no Brasil segue padrões consistentes ao longo do tempo. Ambos os estudos indicam que a maioria dos proprietários de armas são homens brancos, com um número crescente de indivíduos com nível superior e renda de até cinco salários mínimos. A principal justificativa para a aquisição de armas é a autoproteção, motivada pela sensação generalizada de insegurança pública. As armas curtas, que oferecem maior mobilidade e praticidade, são as preferidas para defesa pessoal. Embora esses estudos forneçam uma visão sobre o perfil dos compradores de armas, pouco contribuem para entender a distribuição e circulação dessas armas pelo país.

Com o recadastramento obrigatório de armas adquiridas por Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) entre 2019 e 2022, surgiram dados mais detalhados sobre a distribuição dessas armas. Em 2023, o recadastramento registrou um total de 962.783 armas, oferecendo uma visão mais clara sobre o perfil dos proprietários e a localização geográfica das armas. A maioria dos proprietários são homens (96,79%), e houve um aumento significativo no número daqueles com ensino superior (41,3%). A elevada presença de pessoas ligadas ao setor agropecuário (16,5%), especialmente nas regiões Sul e Centro-Oeste, indica uma correlação entre a posse de armas e o contexto rural e do agronegócio.

As regiões Sul e Centro-Oeste, que juntas abrigam menos de 23% da população brasileira, concentram mais de 49% das armas recadastradas. A elevada demanda por armas nessas áreas pode estar associada a conflitos agrários históricos, onde disputas entre pequenos agricultores, comunidades indígenas, quilombolas e grandes proprietários são comuns. O aumento do número de armas nessas regiões tem o potencial de intensificar ainda mais esses conflitos, aumentando o risco de violência.

A análise dos dados sobre a posse de armas no Brasil revela uma realidade alarmante: mesmo sob uma política supostamente mais restritiva, centenas de milhares de armas permanecem em circulação. Muitas dessas armas estão armazenadas em residências, onde podem ser utilizadas em episódios de violência doméstica, exacerbando esse tipo de crime. Nas áreas rurais, as armas de fogo podem se tornar instrumentos de coerção em conflitos agrários, colocando em risco a vida de pequenos agricultores e integrantes de movimentos sociais. Nas cidades, a crescente popularidade dos clubes de tiro alimenta um ambiente onde a posse e o uso de armas são glorificados, favorecendo a normalização da violência armada em diversas esferas da sociedade.

Diante desse cenário, é crucial que o governo federal implemente com urgência um novo programa de recompra de armas de fogo, com o objetivo de retirar o máximo possível dessas armas de circulação e reduzir os impactos da política de armamento promovida durante o governo Bolsonaro. A recompra de armas não deve ser vista como um gasto, mas como um investimento que pode salvar milhares de vidas.

[i] https://fontesegura.forumseguranca.org.br/homicidios-por-arma-de-fogo-e-falha-na-fiscalizacao-no-brasil/

[ii] Grinshteyn, E., & Hemenway, D. (2016). Violent death rates: the US compared with other high-income OECD countries, 2010. The American journal of medicine, 129(3), 266-273.

[iii] https://noticias.r7.com/cidades/mortes-violentas-caem-mas-brasil-concentra-204-dos-homicidios-do-planeta-indica-estudo-28062022/

[iv] https://www.poder360.com.br/brasil/taxa-de-homicidios-cai-6-em-2021-diz-estudo/

[v] MOURA, Tatiana; BARKER, Gary, no prelo. (2024). Man with a Gun: Masculinities, Firearms and Violence in Global Context. In: INTERNATIONAL Handbook on Social and Gun Violence. De Gruyter Publishers

[vi] SCAPTURA, Maria N.; BOYLE, Kaitlin M. (2022). Protecting Manhood: Race, Class, and Masculinity in Men’s Attraction to Guns and Aggression. Men and Masculinities, v. 25, n. 3, p. 355-376, 2022. https://doi.org/10.1177/1097184X211023545

[vii] KEINERT, Ruben Cesar. (2006). Valores e Significados Atribuídos às Armas de Fogo por Cidadãos Proprietários e por Detentores do Porte de Armas. Ministério da Justiça. Brasília.  Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/2268/1/valores-e-significados-atribuidos-as-armas-de-fogo-por-cidadaos-proprietarios-e-por-detentores.pdf

[viii] SANTOS, Roberto Uchôa de Oliveira. (2021). Armas para Quem? A busca por armas de fogo. Editora Dialética.

ROBERTO UCHÔA - Policial federal, Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

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