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O misterioso intramuro das instituições policiais encobre pistas de uma realidade silenciada
A sociedade admite a relevância da coragem e força física como qualidades indispensáveis ao policial, mas também uma dose tolerável de violência sobre certos grupos constituídos por pessoas pobres e negras, como mostram as evidências.
24/11/2024 21h30
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 251.

Tanto as evidências sobre vitimização policial quanto sobre letalidade policial analisadas no 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública constituem pistas capazes de subsidiar estudos sobre a dimensão do desafio público para acesso à realidade policial por dentro, desde os intramuros das instituições. Sobre o ano de 2023, os dados mostraram que no Brasil houve aumento de 26,2% do número de suicídios de policiais civis e militares e redução de 18,1% dos assassinatos desses agentes. Em contrapartida, desde 2013, as mortes decorrentes de intervenção policial avançaram de forma alarmante: crescimento de 188,9%.

Ainda assim, interpretar esse cenário constitui tarefa desafiadora, uma vez que o aspecto quantitativo, visto isoladamente, é insuficiente para dar conta de traduzir a dimensão da complexidade do trabalho profissional no campo da segurança pública nacional. A ideia de “misterioso intramuro” das instituições policiais alerta sobre características singulares de uma realidade silenciada sob a justificativa da necessidade de preservação da segurança das informações internas.

Os dados sobre vitimização e letalidade policial, por mais que pareçam elementos opostos, são faces da mesma moeda. Ambos os fenômenos – se morrem ou se matam –, são respostas individuais e/ou grupais dos policiais a estímulos de múltiplas naturezas, reflexos das suas vivências cotidianas e influência ambiental, considerando que a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Assim, vale lembrar a importância da função das instituições na construção de estratégias atualizadas e exequíveis para fazer frente aos problemas associados à segurança pública, uma vez que são os estímulos internos que assumem papel fundamental nesse processo, seja de forma objetiva (formação/treinamentos), seja de forma subjetiva (cultura organizacional). Embora conhecidos, são elementos ainda superficialmente problematizados por pesquisadores.

Quanto à vitimização policial, de um lado, destaque para o conjunto de elementos que envolve o trabalho profissional, vulnerabilizando os trabalhadores a ponto de conduzi-los a decisões extremas, como o suicídio. Alerta para os seis fatores condicionantes ao aprofundamento dos problemas de saúde mental citados no 17º Anuário[1]. São eles:

a. o assédio moral;

b. a admissão do papel de “policial herói”;

c. o desgaste físico e mental em razão do contato continuado com situações de perigo;

d. a cobrança institucional pelo cumprimento de metas;

e. o endividamento; e

f. a insegurança jurídica. Por outro lado, as Mortes Violentas Intencionais (MVI) de policiais em confronto em serviço ou durante a folga, mesmo tendo recuado no último ano, ainda chamam atenção pela condição em que mais ocorrem, quando o policial se encontra fora do turno de serviço. Quanto à letalidade policial, é possível considerar duas hipóteses:

1) a influência da cultura grupal na tomada de decisão do policial durante situações críticas; e

2) a recorrência da resposta letal como possível resultante do insucesso do conjunto de políticas públicas e/ou sociais pouco observadas (educação, trabalho e renda, saúde, assistência social, etc.).

A presente discussão tem por finalidade provocar reflexões sobre o alcance da responsabilidade do Estado na produção dos resultados da segurança pública. Diante disso, fundamental que sejam reconhecidos como condição ao campo da segurança os atravessamentos das dimensões política, social e cultural. Tais fatores têm a capacidade de produzir efeitos que envolvem os rumos da segurança pública como direito social. A saber:

1) a dimensão política – que envolve disputas de poder e correlação de forças que determinam as tomadas de decisão que alteram o curso da história, conduzindo os governos na gestão do Estado;

2) a dimensão social – que escancara na forma de sérias consequências as necessidades sociais não contempladas por outras políticas, exigindo como derradeiro recurso respostas do campo da segurança pública; e

3) a dimensão cultural, que envolve o imbricamento entre os vícios da formação policial tradicional e as construções subjetivas que compõem o imaginário popular.

Nesse aspecto, admite-se pela sociedade a relevância da coragem e força física como qualidades indispensáveis ao policial, mas também uma dose tolerável de violência sobre certos grupos, como mostram as evidências sobre segmentos marginalizados da sociedade, constituídos, principalmente, de pessoas pobres e negras.

Ademais, os atravessamentos que dizem respeito ao universo policial fazem referência a ruídos que vão desde a reprodução do machismo estrutural à legitimação de mecanismos para manutenção do status quo, característicos dos espaços de poder. Nesse rumo, paradoxalmente, o apelo público à humanização das polícias conflita com a apatia ou desinformação pública sobre aspectos desumanizantes da formação profissional. De um lado, o requerimento do tratamento público baseado nos direitos humanos, de outro, na prática, o triunfo da cultura de desumanização de parcela da população por parte de grupos policiais.

Vale esclarecer que não se trata de vitimizar a categoria, mesmo porque, em linhas gerais, desempenha poder e autoridade frente à maioria das atividades laborais do país, o que nos permite admitir ser um lugar de privilégio – apesar da desvalorização salarial do presente momento histórico. Trata-se, na verdade, de sinalizar as vulnerabilidades condicionantes a esse coletivo e, portanto, bases de realidades silenciadas.

Fato é que se não há informação que dê conta de dado problema, na prática, não há o que ser resolvido. Logo, questões cruciais são invisibilizadas. Outrossim, as interpretações equivocadas sobre a profissão pesam sobre os ombros daqueles responsáveis pela operacionalização do sistema, ao passo que unem injustiçados pelas dores comuns, fortalecendo, não raro, movimentos tão violentos quanto o sistema que lhes negligenciou a própria humanidade. Isso porque as consequências objetivas das críticas recaem menos sobre os que decidem os rumos da política de segurança do que sobre aqueles que são as peças operacionais dessa engrenagem.

Assim, atuações policiais de repercussão negativa impõem cortinas de fumaça sobre a base de estruturas que desafiam tanto o coletivo da categoria policial quanto o corpo da sociedade, fazendo com que se digladiem ciclicamente como um cachorro que se contorce para abocanhar o próprio rabo. Estruturas até então pouco desafiadas em sua gênese, mesmo que comumente cobradas no campo da superfície, diante do que está posto a olho nu – dados abertos sobre vitimização e letalidade policial. Para além de um desafio setorial, esse debate é um desafio histórico, político e cultural.

REFERÊNCIA:

[1] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/08/anuario-2023-texto-02-as-mortes-de-policiais-em-2022.pdf

JULIANA LEMES DA CRUZ - Doutora em Política Social pela UFF, Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais.

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