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MUNICÍPIOS E SEGURANÇA: quando a justiça social e a esperança são dissipadas
É preciso reformar a arquitetura institucional e as culturas organizacionais das forças de segurança pública, mas tudo o que vemos são estratégias que dissipam, muitas vezes à força, demandas e pressões sociais por justiça social.
25/11/2024 12h08
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 252.

O medo e a insegurança estão entre as principais preocupações dos brasileiros e impactam as eleições municipais de 2024. Em São Paulo, pesquisa do Datafolha de março deste ano mostrou que a segurança pública era a principal fonte de preocupação ou problema para os moradores da cidade, o que sem dúvida elevou o interesse sobre o tema nas campanhas dos candidatos. Outro levantamento do instituto, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pela Folha de S.Paulo (LIMA, 10/2024), revelou a presença cada vez maior de facções criminosas, cracolândias e roubos e furtos de celulares no dia a dia da população, sobretudo nas grandes cidades do país. Diante desse cenário, marcado pela presença de grupos criminosos nas cidades e por mudanças nas dinâmicas criminais, o que temos visto até agora nas eleições é mera repetição de propostas já feitas em outros pleitos: contratação de mais guardas municipais, compra de armamento de calibres mais potentes e, claro, planos mirabolantes para prender/internar à força, em vez de tratar, usuários de drogas como o crack nas regiões mais deterioradas dos municípios.​​​

​Essa miopia demonstra concretamente que a maioria dos candidatos ainda não compreende seu papel diante das novas configurações do crime, cada vez mais fortalecido pela ação das facções e pela mudança do perfil das ocorrências criminais, que agora migram para o mundo digital. Dessa forma, não é surpresa o ambiente de medo e insegurança da população. Para se ter uma ideia do desafio diante de nós, um relatório recentemente apresentado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) no 18º Encontro do FBSP identifica 86 grupos criminosos espalhados pelo país, em sua maioria ligados às duas forças hegemônicas, Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV). Essas holdings do crime compartilham rotas para o escoamento de mais de 20 produtos ilegais para países da Europa, Ásia, África e Oceania, entre eles armas, madeira, minérios e metais preciosos como o ouro (oriundo de garimpos ilegais operados pelas facções), participação em licitações públicas e, principalmente, a cocaína produzida na Colômbia, na Bolívia e no Peru.​

No caso da cocaína, o Brasil é ao mesmo tempo um grande entreposto de distribuição e um grande mercado consumidor da droga. Um levantamento realizado pelo FBSP a partir de dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) aponta que o comércio global de cocaína oferece a esses grupos criminosos um potencial de faturamento da ordem de US$ 65,7 bilhões (R$ 335,10 bilhões), equivalente a 3,98% do PIB brasileiro em 2021. No caso do ouro e dos minérios, dados do Ministério de Minas e Energia de 2019 indicam faturamento entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões (LIMA, BUENO e COUTO, 03/2024).​

Apesar do poderio econômico dessas organizações, o país segue sem uma estratégia integrada entre todos os níveis da federação para combatê-las. Por conta disso, a violência ainda é um enorme problema social, político e econômico, como bem apontaram os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 (FBSP, 2024). Segundo a publicação, o Nordeste e o Norte lideram o ranking de regiões mais violentas do país. No Nordeste, a taxa de mortes violentas intencionais (MVI) é 60% superior à média nacional; no Norte, é 48,8%. Pois é nessas duas regiões que estão localizados os estados marcados por um quadro acentuado de disputas entre facções de base prisional por rotas e territórios, além de concentrarem as taxas mais altas de letalidade policial. Na lista das dez cidades brasileiras mais violentas com população acima de 100 mil habitantes, o topo é ocupado por Santana (Amapá), onde as disputas pelo controle do escoamento de drogas por meio do porto local provocaram uma taxa de homicídios quatro vezes maior do que a média nacional. Na sequência, aparecem seis cidades da Bahia (Camaçari, Jequié, Simões Filho, Feira de Santana, Juazeiro e Eunápolis), uma do Mato Grosso (Sorriso), uma do Ceará (Maranguape) e apenas uma capital, a também amapaense Macapá. Em Jequié, 55% das mortes violentas intencionais em 2023 foram de responsabilidade das polícias estaduais.

O controle de territórios talvez seja hoje o principal desafio das autoridades brasileiras para coibir a presença desses grupos criminosos, seja pela forte atuação das milícias ou mesmo pelo aliciamento, pelas facções de base prisional, de jovens para o tráfico e demais delitos. Nesse sentido, as prefeituras ocupam um papel central no debate, pois cabe a elas o controle de áreas que, muitas vezes, encontraram-se abandonadas pelo poder público. Embora o poder de polícia administrativa e de ordenamento urbano caiba ao município, sendo a principal ferramenta de prevenção e fiscalização, ele tem sido menosprezado no debate sobre municípios e segurança.​

Outros delitos que por muitos anos ficaram sob responsabilidade das polícias militares e civis passam a exigir maior participação dos gestores municipais, do ponto de vista tanto técnico-operacional quanto, e cada vez mais, financeiro. Há duas décadas, a principal preocupação das autoridades em geral era a redução dos homicídios. Ainda que se mantenham em patamares elevados, esses crimes diminuíram bastante ao longo do tempo. O que não mudou foram as propostas dos candidatos, que não conseguem acompanhar as transformações ocorridas no setor de segurança nos últimos dez anos.

A já mencionada pesquisa Datafolha encomendada pelo FBSP e pela Folha de S.Paulo (LIMA, 10/2024) buscou medir a preocupação dos brasileiros em relação a temas do cotidiano e revelou dados que ajudam a explicar o medo e a insegurança nas cidades brasileiras, bem como o descompasso entre os projetos dos candidatos e a realidade dos cidadãos. O levantamento mostrou que ao menos 23 milhões de pessoas com idade acima de 16 anos vivem atualmente em áreas com forte presença de facções criminosas ou milícias e que 14 milhões reconhecem a existência de cemitérios clandestinos em suas cidades. Mostrou ainda que 28 milhões afirmaram passar por cracolândias ou áreas de uso de drogas a céu aberto em seus trajetos para casa, trabalho ou escola. Mais de 19 milhões de pessoas foram roubadas ou assaltadas no transporte, no trabalho ou em casa nos 12 meses que antecederam a pesquisa. Roubos e furtos de celulares continuam em alta, atingindo quase 15 milhões de vítimas, com prejuízo estimado de R$ 22 bilhões — em média, foram 1.680 aparelhos subtraídos por hora.

Quanto aos crimes cibernéticos e digitais, estima-se que os brasileiros tiveram um prejuízo de aproximadamente R$ 190 bilhões nos 12 meses anteriores à realização da pesquisa. Os crimes digitais, inclusive, superaram os físicos entre as 13 modalidades analisadas pelo Datafolha, reforçando a hipótese de migração dos crimes patrimoniais, que na maioria das vezes envolvem algum tipo de violência, para os golpes no mundo digital, para os quais o celular é um elemento central. Ou seja, de nada adianta aumentar efetivos de corporações dedicadas ao policiamento ostensivo — plataforma de 9 entre 10 políticos brasileiros da esquerda à direita do espectro político ideológico — sem que haja investimentos em investigação e, mais que isso, em pessoal especializado em tecnologias da informação e no combate às redes criminosas que enriquecem as facções e milícias.

Diante desses números, enquanto pouco interessa à população quem vai resolver seu problema, se o prefeito, o governador ou o presidente, candidatos do atual pleito municipal não esclarecem para os eleitores os papéis e as capacidades de cada um dos níveis nessa discussão e muitas vezes priorizam essa pauta sobre outras mais atacáveis pelos poderes locais (como educação e saúde) e possivelmente mais prioritárias. Nesse sentido, os órgãos de segurança pública estão diante de um imenso desafio: precisam ao mesmo tempo se modernizar e combater grupos nacionais e transnacionais extremamente organizados que controlam territórios tanto nas pequenas quanto nas grandes cidades do país, a depender dos interesses comerciais, que incluem pontos estratégicos da cadeia de distribuição de drogas e outros negócios ilícitos das duas principais facções criminosas.​

Os prefeitos podem ajudar, e muito, as outras forças de segurança no combate ao crime. Diferentemente do que ocorria no passado, a maioria das guardas municipais já está estruturada para agir como força policial, o que não significa necessariamente que seus integrantes devam sair por aí de arma em punho correndo atrás de criminosos nas ruas e colocando a vida de civis em risco.

Entre as possíveis formas de atuação das prefeituras estão o auxílio às forças policiais por meio de medidas preventivas de planejamento urbano, como maiores investimentos na iluminação das ruas e a oferta de serviços públicos variados, e o apoio à atividade de fiscalização de posturas e da regularidade de bens e serviços comercializados nas cidades. Outra iniciativa que poderia constar nos planos de governo dos candidatos refere-se ao controle de territórios, manejável a partir da solução de questões fundiárias, muitas vezes ignoradas e transformadas em alvo fácil para o controle pelo crime organizado (construções irregulares, serviços de transporte, limpeza urbana, entre outros).

No debate sobre segurança, a violência contra as mulheres parece um tema tabu, pois tem sido muito pouco abordado nos programas de candidatos e candidatas a prefeito(a) no país, com exceção das promessas de manutenção ou ampliação das necessárias, porém insuficientes, patrulhas Maria da Penha. O problema da revitimização, que ganha relevo ao exigir das mulheres vítimas que narrem múltiplas e repetidas vezes o crime por elas sofrido, acaba dando o tom quando a rede de serviços de acolhimento e atendimento às vítimas é acionado. Cada equipamento exige que o drama ocorrido seja narrado novamente, em um fluxo burocrático desumanizador.

O caso da chamada Cracolândia, em São Paulo, ilustra bem o que estamos tratando. Há pelo menos três décadas, essa região no centro da capital paulista tem sido uma dor de cabeça para prefeitos e governadores. Ao longo desse período, várias incursões policiais e programas foram levados à região, em sua maioria justificados por uma política de guerra às drogas, mas muito marcados também por um fundo de higienismo social. Toda eleição é a mesma história: “Agora vamos dar um jeito na Cracolândia!”. Mas o fracasso é evidente, dado que nos últimos cinco anos o pretenso combate aos traficantes e usuários espalhou essas pessoas para outras áreas, ampliando as cenas abertas de uso de drogas e aumentando as ocorrências de roubo e furto nesses bairros.

O que era um problema exclusivamente da polícia e de saúde pública acabou se transformando em uma questão de honra para as autoridades que se sucedem na Prefeitura paulistana, ainda que nenhuma delas encontre uma solução definitiva para a população. É óbvio que o crime organizado está presente naquele local, como vimos recentemente em uma operação realizada pelo Ministério Público e pelas polícias de São Paulo na região central da cidade. Mas não só o crime, tendo em vista que uma quadrilha formada por guardas civis municipais teria faturado mais de R$ 6 milhões cobrando por proteção aos comerciantes e pela prestação de informações sigilosas sobre investigações a grupos criminosos operantes na região(1).

Quando havia apenas a preocupação com os homicídios na cidade, o problema era muito restrito à polícia. Mas um debate sério sobre a Cracolândia deveria se pautar não apenas pelos aspectos criminais, com o combate aos efeitos do narcotráfico no centro do debate, mas também por outras ações, como um melhor planejamento urbano e serviços eficazes de saúde pública aos usuários de drogas. O mais cruel é que só em alguns casos o tema da prevenção da violência e da redução de vulnerabilidades ganha destaque, pois muitas guardas municipais estão mais preocupadas em emular um padrão de atividade policial militar do que em desenvolver novas formas de atuação.

As prefeituras não podem limitar seu trabalho na área às ações das guardas municipais e ao simples aumento de seus efetivos. Se essa fosse a única solução para o problema da segurança nas cidades, muita coisa seria diferente. O Raio-X das forças de segurança pública (LIMA, 02/2024), divulgado no início deste ano pelo FBSP, mostra que o efetivo das forças municipais cresceu cerca de 35% entre 2013 e 2023 no Brasil. Se levarmos em conta o que estamos vendo nas campanhas eleitorais, continuaremos enxugando gelo e em nada vamos mudar o cenário de expansão cada vez maior dos grupos criminosos.

Este texto foi estruturado a partir de exemplos e dados nacionais e, quando especificados, da experiência de São Paulo. Mas, em termos analíticos, as questões nele levantadas se aplicam a todas as cidades do país, sobretudo as maiores. No caso do Rio de Janeiro, as alegações e/ou acusações entre os dois candidatos que lideravam as pesquisas no primeiro turno reforçam o sentimento de que estamos em um momento de ausência completa de projetos políticos que, para além da conquista do poder, tenham a perspectiva da segurança como um direito social em si e como condição básica para o exercício pleno da cidadania.

Não existe fórmula mágica para a gestão da segurança pública nos municípios. Contudo, precisamos nos preocupar mais com as reformas na arquitetura institucional e nas culturas organizacionais das forças de segurança pública. Em vez disso, o que estamos vendo são estratégias que somente dissipam, muitas vezes à força, demandas e pressões sociais por justiça social. Dissipam a esperança e acabam por fomentar o medo e a insegurança.

*  Artigo publicado originalmente no Blog Dilemas: Reflexões no dia 8/10. A versão original pode ser acessada no endereço

Sugestões de leitura

FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2024.

LIMA, Renato Sérgio de (Coord.). Pesquisa de vitimização e percepção sobre violência e segurança pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP); Instituto de Pesquisas Datafolha, out. 2024.

LIMA, Renato Sérgio de (Coord.). Raio-x das forças de segurança pública do Brasil. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), fev. 2024.

LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira; COUTO, Aiala Colares (Coords.). A nova corrida do ouro na Amazônia: Garimpo ilegal e violência na floresta. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP); Instituto Mãe Crioula; Instituto Clima e Sociedade (ICS), mar. 2024.

Nota

1 Ver: FREITAS, Hyndara. “Operação na cracolândia mira hotéis, ferros-velhos e ‘ecossistema de crimes’ do PCC: Investigações trazem indícios de que facção tem uma rede de exploração sexual de pessoas dependentes químicas e em situação de vulnerabilidade”. O Globo, São Paulo, 6 ago. 2024. Disponível (on-line) em: https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/08/06/policia-e-mp-fazem-operacao-na-cracolandia-que-mira-hoteis-ferros-velhos-e-ecossistema-de-crimes-do-pcc.ghtml

RENATO SÉRGIO DE LIMA - Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da Fundação Getúlio Vargas.

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