O papel do presidente da República na segurança pública no Brasil é complexo e, em muitos aspectos, limitado, uma vez que a administração direta das forças policiais cabe principalmente aos governadores de estado. No entanto, o presidente pode influenciar essas políticas por meio de diretrizes nacionais, da coordenação entre entes federativos, da distribuição de recursos condicionados a metas específicas e da formulação de uma agenda programática que sinalize prioridades e soluções. Além disso, a retórica presidencial exerce um impacto substancial no debate público, e pode reforçar expectativas de políticas mais garantistas ou repressivas, o que influencia tanto a ação dos estados quanto a percepção da própria sociedade sobre a segurança pública.
Um dos aspectos mais críticos dessa agenda é o controle do uso da força letal pelas polícias. Dados de 2015 a 2024 mostram uma escalada significativa nas mortes por intervenção de agentes do Estado, que começa a ganhar força durante o governo de Michel Temer, com sua política de maior repressão e militarização da segurança pública. Essa tendência se consolidou durante a gestão de Jair Bolsonaro, que adotou um discurso abertamente favorável ao uso da força letal pelas polícias, resultando em índices de letalidade sem precedentes. Sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, esses números não apresentaram a queda esperada, o que reflete os desafios de reverter o legado de políticas agressivas e a dificuldade de implementar um controle mais efetivo sobre o uso da força letal no país.
Fonte: SINESP, MJ
É fundamental reconhecer que, devido ao arranjo institucional da segurança pública no Brasil, o presidente e sua agenda política não são os únicos ou mesmo os principais responsáveis pelas variações nos índices de letalidade policial. No entanto, o contexto político e ideológico no qual atuam desempenha um papel central para entender como as polícias estaduais são empregadas no cotidiano. Desde o governo de Michel Temer, em 2016, o Brasil passou por uma guinada à direita, que fortaleceu pautas de militarização e priorizou o uso da força como solução para a criminalidade. Esse realinhamento político nacional foi fundamental para a manutenção de altas taxas de letalidade policial, especialmente à medida que governadores estaduais, alinhados a essa agenda, adotaram políticas igualmente repressivas em seus estados.
O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, marcou o início de uma profunda reconfiguração política. A ascensão de Michel Temer trouxe uma agenda conservadora que influenciou diretamente o debate sobre segurança pública. Sob seu governo, o discurso militarista ganhou força, com o foco na repressão e a negligência em relação a grandes planos de redução de homicídios e outras formas de violência, incluindo a letalidade policial. Esse cenário se intensificou com a eleição de Jair Bolsonaro, cuja retórica abertamente favorável ao uso da força letal atraiu um eleitorado disposto a aceitar medidas extremas. Bolsonaro consolidou um contexto político em que a violência se tornou central não apenas como política pública, mas também como marcador de identidade política, legitimando práticas violentas e enfraquecendo mecanismos de controle institucional.
O governo Lula, por sua vez, enfrenta o desafio de romper com esse ciclo de violência estatal e introduzir um novo paradigma de segurança pública, centrado na prevenção e na redução da letalidade policial. Entretanto, até o momento, os dados não apontam mudanças significativas nessa tendência. Passado mais de um terço de seu mandato, o cenário continua a refletir um estado de inércia, em que o uso excessivo da força letal pelo estado persiste. A continuidade dessa prática revela não apenas os desafios herdados das gestões anteriores, como também a dificuldade de alterar uma cultura institucional profundamente enraizada que privilegia o uso da força como solução para a criminalidade.
Além dos desafios institucionais, outro obstáculo está na própria esquerda, que enfrenta dificuldades para articular uma agenda clara e incisiva de segurança pública. Esse vácuo deixou espaço para que a direita dominasse o debate público, priorizando soluções repressivas que continuam a moldar as práticas de segurança em vários estados. Enquanto a direita se consolida em torno de uma narrativa que legitima o uso da força, a esquerda se mostra incapaz de formular propostas que tragam uma alternativa viável e eficaz de controle da violência, inclusive a estatal.
É alarmante que um governo eleito sob uma plataforma progressista ainda registre mais de 6.000 mortes por intervenção policial anualmente, sem que isso seja tratado como um problema prioritário. O governo Lula precisa demonstrar um compromisso inequívoco com a redução dessas mortes, o que pode incluir a implementação de metas claras e o condicionamento de repasses federais ao cumprimento dessas metas. O grande desafio que permanece para Lula, e para futuras administrações progressistas, é romper com a inércia das políticas repressivas e estabelecer um novo paradigma de segurança pública que priorize a prevenção da violência, incluindo expressamente a redução da letalidade policial. Para tanto, será necessária não apenas vontade política, mas uma articulação institucional robusta que coloque o respeito aos direitos humanos no centro das estratégias de segurança pública.
ARIADNE NATAL - Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF), Pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 252.
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