As duas últimas propostas do Governo Federal sobre segurança pública e a reação de diversos grupos põem em relevo alguns conflitos ontológicos no/pelo campo de segurança pública. Destaco a proposta de diminuição da letalidade policial a partir da modificação da portaria interministerial nº 4.226 de dezembro de 2010, que trata sobre o controle das ações policiais e a recente apresentação da PEC do SUSP apresentada. Apesar de objetivos diferentes, as reações e resistências às propostas estão ancoradas pelo mesmo fio condutor: a manutenção da indefinição dos capitais simbólicos e culturais do campo de segurança pública, próprio de um campo em “construção e em conflito”.
Os dois fatos estão umbilicalmente ligados porque as reações são semelhantes e pelo mesmo motivo. Primeiramente, cito algumas falas do governador de Goiás durante a reunião do presidente da República com os chefes dos Executivos estaduais, sentenciando que o Sistema Único de Segurança Pública não pode ser “confundido” com o Sistema Único de Saúde ou o Sistema de Educação. Também acredito que não, mas por motivos diferentes. Resumidamente, para o governador os problemas de educação e saúde são semelhantes e até mesmo iguais em qualquer lugar do Brasil, o que difere das questões da segurança pública. A afirmação demonstra desconhecimento nos três temas: saúde, educação e segurança pública.
Mas a discordância vai além: os campos da saúde e da educação estão definidos, mesmo com conflitos internos. Em cada área temática é possível descrever as competências dos entes federativos, das categorias profissionais (inclusive em níveis) e, entre várias outras características, o habitus, os capitais simbólicos e culturais estão definidos. São perceptíveis a divisão de trabalho e a integração sequencial, assim como o conhecimento mínimo em cada categoria profissional, os protocolos sistematizados, e a autoprodução de conhecimento especializado. Os protocolos estão fundamentados em evidências científicas, possibilitando, inclusive, controle externo porque há parâmetros teóricos e metodológicos.
Para este último ponto, creio ser este o fio mestre da inércia de governos: a ausência de estímulos à autoprodução de conhecimento em segurança pública e conhecimento policial fundamentado cientificamente. O professor e pesquisador José Vicente Tavares do Santos sintetizou algumas experiências de ensino policial e segurança pública no Brasil, destacando algumas ações desde 2003. A elaboração de uma Matriz Curricular Nacional fomentada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) com participação de policiais, gestores e acadêmicos foi preambular para a formatação do capital cultural e para o campo. O professor ainda destaca que a Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp) foi instituída oficialmente em 2012 pela necessidade de: “fomentar estudos e pesquisas voltados à modernização das instituições policiais; valorizar esses profissionais, incentivando-os a participarem de cursos; promover estudos, pesquisas e indicadores sobre violência, criminalidade e outros assuntos relacionados à segurança pública; e fortalecer a articulação com instituições de ensino superior na promoção da capacitação em segurança pública.”. Em 2016, a partir da proposta de uma Escola Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública executada pela SENASP em parceria com a CAPES e, em articulação com as Instituições de Ensino Superior (IES) federais, foram realizados mestrados profissionalizantes.
Foram ações governamentais importantes, todavia incipientes quanto à construção de um conhecimento reflexivo próprio da segurança pública e principalmente por ter como público-alvo predominante policiais e bombeiros enquanto agentes de segurança pública. Retornando à comparação com outros sistemas e, por consequência, com outros campos, que há uma diversidade de profissionais e, no caso da Educação, que recentemente reconheceu a importância das intervenções de profissionais de psicologia e da assistência social enquanto profissionais da Educação (Lei 13.935/2019), há possibilidades de outras áreas de conhecimentos profissionais serem agentes de segurança pública? Inclusive bacharéis em segurança pública, psicólogos, assistentes sociais, cientistas sociais, educadores sociais, entre outros, poderiam compor quadros de secretarias, unidades regionais e/ou locais contribuindo para análise da criminalidade e na formulação de políticas de intervenção (na perspectiva da segurança pública) ou nas urgências e emergências assessorando nas mediações de conflitos ou resoluções (na perspectiva da intervenção no crime)? Ou, principalmente, esses outros profissionais poderiam contribuir endogenamente de forma institucionalizada na construção de um conhecimento policial e de segurança pública, tal qual ocorre nas áreas da saúde e da educação, nas quais há um conhecimento multidisciplinar acerca de um objeto de estudo ou de uma intervenção?
Pensar Segurança Pública apenas a partir do poder de polícia é uma das críticas da professora e pesquisadora Jacqueline Muniz ao analisar a PEC do SUSP que, segundo sua análise, está como uma PEC do Sistema Único Policial. A PEC atualiza as competências das Polícias Federal (atuando em crimes ambientais, por exemplo) e Rodoviária Federal (com atribuição de policiamento ostensivo federal), além de padronizar dados, entre outras sugestões de alterações. Segundo Muniz, a expansão das competências e a centralização do objeto nas polícias “… aumenta a já grave ingovernabilidade dos meios de força” e é fundamental “(…) ter um projeto efetivo de redesenho institucional para o SUSP amplamente conhecido pela sociedade, que permita simular e antever problemas já conhecidos pelas experiências históricas estudadas pela ciência”.
Retomando ao ponto da construção do conhecimento científico, evidentemente que há cursos superiores que concatenam uma diversidade de conhecimentos científicos como, por exemplo, o pioneiro curso Bacharelado em Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense, que foi estruturado para promover formação interdisciplinar e com o objetivo de formar “profissionais civis” para atuar nas áreas de gestão, avaliação e promoção de políticas públicas, pesquisa acadêmica, na produção de diagnóstico e análises. O êxito do curso e a experiência da UFF fundamentou a criação de um curso de bacharelado em segurança pública na PUC-RS.
Apesar do grande empenho da UFF e de outras Instituições de Ensino Superior (IES) do Brasil em ofertar cursos de bacharelado e de tecnologia na área, reitero que ainda não é uma prática institucionalizada no campo de Segurança Pública, inclusive não há demanda municipal, estadual ou federal por tais profissionais. As carreiras policiais também têm formação própria, sem a necessidade direta de uma formação anterior na área para ingressar ou para progressão.
Outras experiências importantes para fomentar a construção de conhecimento próprio são as práticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) ao contribuir para a transparência de informações sobre violências e na prospecção de Políticas de Segurança. Composto por profissionais de segurança pública, pesquisadores, gestores, operadores do sistema, entre outros, fomenta o debate sobre políticas de segurança pública e sobre práticas policias. Fundado em março de 2006, o FBSP contribui com produções que provocam formações de agenda de políticas e fundamentam políticas de segurança pública.
A despeito de importantíssimas ações, tanto as iniciativas das IES quanto as do FBSP são ações “externas” ao campo, quase em uma interseção com o campo da educação, fomentadas por pesquisadores e policiais, entre outros vocacionados que não têm o “poder” de institucionalizar um método para a produção do conhecimento.
“Internamente” também há ações, como a fundação do Instituto Superior de Ciências Policiais da Polícia Militar do Distrito Federal, primeira faculdade de uma instituição policial militar credenciada e avaliada pelo INEP/MEC. São ofertados os cursos de Bacharelado em Ciências Policiais (Curso de Formação de Oficiais) e Tecnólogo em Segurança Pública (para agentes de segurança pública do Distrito Federal). Todavia, apesar de importante, a constituição de algumas Academias de Polícias em IES ainda não tem o “poder” de institucionalizar o conhecimento científico como fonte orientadora das ações e operações policiais porque não há regulamentação nacional que determine a formação e as práticas profissionais enquanto bacharéis em segurança pública nas polícias militares.
Isso nos faz retornar à análise das resistências à proposta de controle sobre as abordagens policiais, ao uso de câmeras e a quaisquer outras ações policiais. As propostas são apenas diretrizes das motivações para abordagens e suas consequências, principalmente porque não há respostas produzidas cientificamente para algumas questões. Por exemplo: qual o efetivo mínimo para compor uma viatura e quais variáveis são consideradas para essa formação? Quantas viaturas deve haver em um determinado perímetro e quais variáveis são consideradas? Qual a quantidade mínima de policiais para realizar uma abordagem a uma pessoa? Qual a distância segura para policiais e a pessoa abordada? Qual o material mínimo de EPI, de armamento menos letal e de armamento letal que deve ser utilizado por um agente de segurança que fará a abordagem? Interessante notar que as unidades policiais especializadas geralmente têm respostas e protocolos fundamentados para suas ações. Assim como para alguns crimes como de Violência Doméstica há conhecimento multidisciplinar empregado para a construção das intervenções necessárias.
Entretanto, para ações não especializadas e cotidianas, as diretrizes e as resistências estão no campo do direito e da política (muitas vezes partidária). Mas tanto as propostas quanto as resistências ainda não propuseram um debate a partir da prática policial, apresentando as variáveis e fundamentando as respostas. Porque para tanto é necessária uma produção de conhecimento reflexivo, fundamentada na teoria e analisada metodologicamente a partir das práticas cotidianas e apresentada à sociedade científica para ser validada. E para tal produção, por exemplo da questão da abordagem, são necessários conhecimentos sociopsicológicos, de anatomia e limites da defesa pessoal, do direito, entre vários outros, para que se responda simplesmente quantos policiais são necessários. Como não há vácuo no poder, às vezes as repostas são puramente político-partidárias, com possíveis “n” interesses.
Portanto, realmente o SUSP ainda não tem condições de ser um SUS porque o campo de segurança pública ainda está em disputa entre as categorias de trabalho; entre as instituições policiais; entre os entes federativos do Brasil; entre a lógica da tradição e a lógica da racionalidade; entre a prática e a teoria; entre o militarismo e o juridicismo; e entre as instituições do Estado e grupos organizados da sociedade civil. Por isso as respostas às questões de segurança pública e de atividade policial são colchas de retalhos, até com algumas costuras próximas, mas sempre aparentes.
Entretanto, há esperança. Que as pessoas vocacionadas continuem fomentando núcleos de pesquisa e ensino nas diversas instituições do Estado e dos grupos organizados e continuem convidados agentes de segurança pública para refletir as práticas institucionalizadas. Que profissionais de diversas áreas de conhecimento dediquem estudos e pesquisas sobre conflitualidades e mediações, violências, crimes, medo, atuação policial e criminalidade, entre outros temas pertinentes à segurança pública. E, principalmente, como Muniz destacou, a importância de que haja modelagens das arquiteturas organizacionais, com cadeia de comando e das carreiras e especializações funcionais. Que as próximas propostas, tanto de intervenção e controle das ações policiais quanto de organização do Sistema de Segurança Pública sejam discutidas por políticos, por especialistas, pelas diversas categorias profissionais, por representantes institucionais da segurança pública, e diversos setores da sociedade civil, mas que o fio condutor seja a multiplicidade das diversas áreas do conhecimento científico.
GILVAN GOMES DA SILVA - 1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).
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