A manhã do dia 27 de outubro de 2024, um domingo, despertou o país para mais um rito político. O segundo turno das eleições municipais seria realizado em algumas cidades e capitais, incluindo a capital paulista. Como de praxe nessas ocasiões, a grande imprensa se mobilizava para cobrir o fato político de relevância nacional quando, pouco antes da abertura das sessões de votação, outro fato isolado chamou a atenção na Rodovia Fernão Dias, que corta um município próximo da capital, e entraria para a pauta jornalística naquele mesmo dia. O acontecimento se arrastou por toda a semana, e recebeu crescente interesse na esfera pública.
Logo nas primeiras horas da manhã, veio a público a notícia de mais um enfrentamento entre torcedores de futebol longe dos estádios. O palco foi uma barreira de pedágio na referida rodovia, à altura de Mairiporã, cidade da Grande São Paulo.
Torcedores filiados à Mancha Alviverde, que reúne palmeirenses, emboscaram dois ônibus que conduziam cruzeirenses ligados à organizada Máfia Azul, que voltavam a Belo Horizonte após partida do clube mineiro contra o Athletico-PR, realizada no sábado, em Curitiba. O Palmeiras havia jogado no mesmo dia com o Fortaleza, na capital paulista.
As imagens rapidamente invadiram as redes sociais e pouco de furtivo se notou nas ações daqueles torcedores superexpostos em cenas, parte delas autofilmadas, que remetem a tantos outros enfrentamentos e conflitos urbanos. O ocorrido foi quase de imediato reconhecido pela memória de quem retém ou acompanha dinâmicas entre torcidas organizadas: tratava-se de uma vingança dos palmeirenses perpetrada contra os membros da Máfia Azul.
Ainda que um notório histórico contencioso – mais precisamente desde 1988 – entre essas duas torcidas pudesse despertar maior rigor e esforço da inteligência da polícia do Estado, sobretudo da parte dos setores responsáveis por monitorar a movimentação de frações mais violentas de torcidas organizadas, pouco ou nada se verificou nesse sentido.
O fato é que, dois anos antes, outra escaramuça, que envolvera cruzeirenses que rumavam a Campinas, e surpreenderam um contingente mais reduzido de palmeirenses que se encaminhavam à capital mineira, havia deixado um saldo de agressões que teve lugar em outro trecho da mesma rodovia. Naquela ocasião, dirigentes palmeirenses foram apanhados na dinâmica do confronto como “troféus” humanos.
Isso pode ser notado em vídeos que circulam pela internet. As imagens, captadas pelas lentes de celulares de cruzeirenses, mostram esses torcedores humilhando o presidente da Mancha Alviverde, mas preservando em parte sua integridade física, em nome de uma suposta “ideologia” de torcida. O dirigente da organizada do clube paulista teve pertences roubados, inclusive sua carteira de identidade. O documento passou a ser exibido pelos cruzeirenses meses a fio como butim de uma batalha exitosa, intensamente comemorada.
O troco palmeirense, imposto aos cruzeirenses naquele fatídico domingo de eleições, concretizado após dois anos, veio acrescido de uma brutalidade ainda maior.
Segundo os torcedores de outras agremiações e conforme também a mea culpa publicada no Instagram de Paulo Serdan, conhecido fundador da Mancha Verde, ex-dirigente daquela organizada e hoje presidente da escola de samba homônima, a ação do domingo de eleição foi desproporcional. A torcida e a escola de samba têm CNPJs diferentes.
Ferindo códigos de torcedores que circulam pela malha de torcidas organizadas por todo o território nacional, aquela ação dos palmeirenses havia corrompido as dinâmicas desses enfrentamentos denominados por eles mesmos de pistas. Em tese, as pistas devem se restringir a refregas e enfrentamentos apenas físicos, a chamada briga grupal “no mano a mano”. Na tentativa de manter um acordo tácito, se um torcedor for ao chão, há que cessar a agressão.
Porém, o emprego de artilharia de fogos de artifício disparados contra os ônibus cruzeirenses, somado à queima de um deles e ao porte de armas de fogo, barras de ferro e bastões, escalou, até mesmo para a sensibilidade já abrutalhada desses torcedores, os níveis da agressividade permitida. Como amplamente divulgado, o saldo nefasto foi de vários torcedores gravemente feridos, atendidos em hospitais da região, e um homem de 30 anos morto por queimaduras e golpes fatais.
Numa sociedade marcada por punitivismos que incidem sobre os corpos, sobretudo os juvenis e os populares, seja em ações tomadas por legais ou, como estas, consensualmente ilegais, essas contendas carregam algo de sacrificial no sentido de oferecer uma pálida restituição moral de uma ordem institucional fugidia que se apresenta como incompleta. Esse caso, para além da rotineira competitividade agonística preservada pelas dinâmicas incensadas por um esporte de espetáculo e de massa como o futebol, apresenta-se como exemplo de uma conjuntura mais intrincada.
Vingança é fenômeno acompanhado da dinâmica de impingir sofrimento aos corpos como suplementar esforço de legitimar valores como honra, altivez e poder, valores amplamente partilhados em sociabilidades masculinizantes e, nesse caso, antagonismos esportivos exacerbados.
A grita geral por justiça imediata e reativa diante da violência torcedora pode acabar isolando o fato como sendo um acontecimento de violência circunscrito apenas a torcedores tomados por marginais e irracionais, tal como se escuta no jargão apressado de uma mídia sensacionalista. Na verdade, o ocorrido revela e reverbera o quanto de brutalidade institucional pode ser desdobrada, mais uma vez, a partir do futebol como epicentro de uma série de fracassos relativos que alimentam a controvertida noção de ordem social vivida no Brasil.
Não pode ser apenas casual associar esse evento específico às tentativas de recrudescimento de certos valores autoritários que passaram a rondar o país no último decênio, em que ações diretas contra a cidadania quase que rotinizaram um modus operandi pautado por vinganças, assassinatos políticos e tentativas de quebra da institucionalidade.
As mesmas torcidas organizadas festejadas por se colocarem em postura de enfrentamento ante as escaramuças autoritárias evidenciadas em ações contra a democracia, há pouco tempo atrás, veem-se agora diante do velho dilema da sociabilidade esportiva regressiva. Punir o CNPJ ou o CPF passa a compor agora uma batalha diante de um crime que pode escalar ainda mais a violência e a mobilizar ainda outros atores indesejáveis na cena popular justamente num momento em que tentativas de se levar adiante um pacto contra o crime organizado se insinuam no seio da Federação.
O descompasso entre vida política e sociabilidade na dinâmica da sociedade civil ainda parece ser o grande nó górdio a ser desatado. Só o amadurecimento das várias instâncias da institucionalidade, de partidos políticos às instituições do Estado, da associação de torcedores de futebol (a ANATORG) à responsabilização das autoridades esportivas, sejam elas federações, confederações e dirigentes dos grandes clubes esportivos, poderá romper os pactos de intolerância, ódio e violência que transversaliza a sociedade brasileira.
LUIZ HENRIQUE DE TOLEDO - Professor Titular de Antropologia/UFSCar.
BERNARDO BUARQUE DE HOLLANDA - Professor da Escola de Ciências Sociais/FGV CPDOC.
Fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 254.
Clique na IMAGEM e acesse a Coluna Fonte Segura/PÁGINA DE POLÍCIA, espaço destinado para publicações de artigos dos articulistas do Fonte Segura/Fórum Brasileiro de Segurança Pública.