Na última semana, a jornalista Malu Gaspar dedicou coluna[1] a tema sensível na Polícia Federal: a internacionalização por meio de adidâncias e oficialatos no exterior. A coluna informou que, no início de outubro deste ano, a PF abriu processo seletivo para que policiais possam se candidatar a tais cargos, em especial nos Estados Unidos, no Chile e no Canadá. Como todo processo seletivo, os candidatos devem participar de diversas etapas até que o processo seja finalizado.
A jornalista lembra que os cargos de adidância e oficialato são muito disputados na corporação e que o tal processo pretende implementar mudança em relação à forma como vinham sendo preenchidos – com viés para atendimento de interesses políticos – e de forma mais acirrada nos últimos anos, principalmente nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. Compartilhamos, em parte, dessa visão.
Não é a primeira vez que dedicamos espaço neste veículo a tal tema. Em agosto de 2020 (FS nº 54)[2] dedicamo-nos a uma breve revisão sobre a forma como tais cargos vinham sendo preenchidos e chegamos à ponderação de que essas posições pareciam “exercer uma dupla função dentro da instituição”, ora para destino após alguns deixarem cargos de chefia do órgão, ora como etapa importante para aqueles que almejam cargos na corporação, como mais uma experiência que os habilite ao cargo mais alto da corporação, ou seja, a Direção Geral. Na ocasião, justificamos tal ponderação com as nomeações de Paulo Lacerda (lotado em Portugal) e Fernando Queiróz Segóvia (lotado em Roma) após suas atuações na Direção Geral da instituição e as nomeações de Rogério Augusto Viana Galloro e Maurício Leite Valeixo, ambos adidos nos EUA antes de assumirem a Direção Geral da PF.
Realmente, nos dois governos citados pela reportagem, tais nomeações parecem ter assumido um status de negociação e recurso de poder na instituição. Contudo, é importante ressaltar que tais posições no exterior têm sido um desafio organizacional para a PF desde que a expansão de relacionamentos em outros países se tornou fundamental para investigações e o entendimento das conexões da criminalidade organizada em diferentes partes do mundo.
O projeto “PF no Mundo” não é novidade de 2023. A recente versão parece-nos mais um esforço da instituição para que tal processo se dê com base em critérios técnicos e não como recurso de barganha política. Em meados dos anos 2000, o “PF no Mundo” foi lançado com o objetivo de expandir relacionamentos e interlocução com demais polícias e agências de controle, processo importante para a investigação do crime transnacional, incluindo crime de lavagem de dinheiro, já previsto em tratados internacionais como a Convenção de Viena (1988), a Convenção de Palermo (2000) e a Convenção de Mérida (2003). Para que tal processo fosse viabilizado, resistências internas foram enfrentadas, principalmente o desafio de institucionalizar a representação de forma a encaminhar policiais com perfil para a função e replicar os conhecimentos por eles adquiridos ao seu retorno.
No ano de 2005, houve a publicação da Instrução Normativa (IN) nº 001/2005 da PF, com o objetivo de estabelecer critérios sobre o processo seletivo, a designação, a preparação para a missão, as funções dos adidos, bem como sobre os direitos e as vantagens dos adidos e auxiliares de adidos acreditados junto às missões diplomáticas brasileiras no exterior, bem como outras providências. A IN estabeleceu, também, uma série de requisitos para a candidatura de um policial federal ao processo de seleção dos cargos de adidâncias nas missões, seja como adido ou auxiliar de adido.
Além disso a IN de 2005 estabeleceu competências, designando que a da Diretoria de Gestão de Pessoal ficaria responsável pela seleção para adidos e adidos auxiliares; pelo seu treinamento ou estágio de preparação na ANP; pelos procedimentos de indicação e pós-nomeação de quem vai às missões, como lotar policiais nomeados e elaborar proposta de enquadramento da missão para apreciação da Direção Geral. As Diretorias Executiva e de Inteligência Policial também tiveram suas competências definidas à época.
Contudo, a realidade é que desde a versão inicial do PF no Mundo, relatos de policiais federais[3] que já passaram por tal experiência não condizem com os procedimentos formalizados, principalmente no que tange à seleção de policiais, ao acompanhamento das atividades e ao seu aproveitamento no retorno das missões. Há nos relatos a ideia de que a adidância na Polícia Federal é tida como um prêmio, uma oportunidade de “reconhecer” um policial por sua atuação na instituição, mesmo que não tenha perfil para esse tipo de atividade. Muitos policiais foram para missões no exterior sem nem mesmo falar o idioma do país ou sequer ter fluência em inglês.
Quase 20 anos após, a INº 268/2023 da PF revisitou critérios técnicos para a recrutamento de policiais para tais postos e reorganizou responsabilidades institucionais, já que atualmente o PF no Mundo está sob a tutela da Diretoria de Cooperação Internacional da PF, área que recentemente ganhou status de diretoria, pois até 2020 era uma coordenação ligada à Diretoria Executiva do órgão.
Desde que foram iniciados, os movimentos institucionais do PF no Mundo caminham para a normatização e condução técnica do projeto e seu desdobramento institucional. Entretanto, na prática, a dinâmica institucional não corresponde à proposta do projeto. Parece-nos que para além do processo seletivo baseado em critérios técnicos e com menos interferência política, desafio institucional importante é direcionar, acompanhar e capitalizar o trabalho realizado por policiais que assumem posições de adidância e oficialato no exterior.
É fundamental a consolidação institucional e não personalizada do processo de internacionalização e fortalecimento de relações diplomáticas com órgãos de investigação no mundo, bem como a troca de experiências, transmissão e disseminação do aprendizado daqueles que representam a PF no exterior junto ao corpo operacional da PF. Movimentos como o status de Diretoria para a Cooperação Internacional e nova versão do PF no Mundo dão indícios de nova tentativa de mudança endógena a respeito da internacionalização.
[1] Disponível:
[2] Disponível:
[3] Fagundes, A. L. Polícia Federal e o combate à corrupção: transformação discursiva e mudança institucional endógena. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas, Porto Alegre. 2022. Disponível:
ANDRÉA LUCAS FAGUNDES - Doutora em Políticas Públicas/UFRGS.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 254.
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