No Recurso Extraordinário 608588, em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF), com repercussão geral (Tema 656), são analisados os limites da competência legislativa dos municípios para definir as atribuições das guardas municipais, especialmente no que diz respeito ao exercício de funções de policiamento preventivo e comunitário para proteger bens, serviços e instalações municipais, e realizar prisões em flagrante delito. A questão chegou à corte em 2010, após a Câmara Municipal de São Paulo recorrer de uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que declarou inconstitucional dispositivo que conferia à Guarda Civil Metropolitana a responsabilidade pelo policiamento preventivo e comunitário.
No STF, a Câmara Municipal argumentou que conflitos em locais e prédios públicos poderiam resultar em danos ao patrimônio do município, justificando a intervenção das guardas, em atividades típicas de policiamento. No dia 23 de outubro de 2024, o relator, ministro Luiz Fux, considerou, em seu voto, que a lei não ultrapassou os limites do poder normativo municipal, uma vez que a competência para legislar sobre segurança pública é concorrente, ou seja, cabe aos municípios, aos estados e à União. O ministro relator argumentou que, em diversos precedentes, o STF já firmou entendimento de que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública.
De fato, as atribuições das guardas municipais têm sido tema frequente de julgados no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), especialmente sobre a validade de provas obtidas por guardas em ocorrências de tráfico de drogas. Desde 2022, o STJ havia imposto limites à atuação das guardas municipais, mas, acompanhando a tendência do STF de validar ações ostensivas das guardas, passou a revisar sua jurisprudência.
Em outubro de 2024, a 1ª Turma do STF considerou válidas, por maioria, as provas obtidas por guardas municipais em uma busca domiciliar em que o acusado teria descartado drogas ao avistar os agentes, que posteriormente foram encontradas em sua residência. O ministro Alexandre de Moraes cassou o acórdão da 5ª Turma do STJ que havia absolvido o suspeito, justificando que a guarda atuou dentro da legalidade em um crime de caráter permanente (tráfico de drogas).
Em contrapartida, uma decisão anterior da 1ª Turma, de junho de 2022, restabeleceu um acórdão do TJ-SP que absolveu um suspeito abordado após denúncia anônima, pois, segundo o ministro Luís Roberto Barroso, a prisão extrapolava o flagrante delito e exigiria investigações adicionais, o que ultrapassa as competências das guardas municipais. Entre essas decisões, em 2023, o STF decidiu, na ADPF 995, que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), mas em seu voto o ministro Edson Fachin ressaltou que esse reconhecimento não amplia automaticamente suas competências, que devem estar alinhadas à proteção de bens públicos municipais. De qualquer forma, a ADPF 995 consolidou o entendimento de que as Guardas Municipais possuem poder de polícia e integram o sistema de segurança pública, ampliando as possibilidades de atuação dessas instituições.
Recentemente, em decisão monocrática, o ministro Flávio Dino validou a busca pessoal realizada pela guarda contra um suspeito de roubo, fundamentando a decisão na existência de razões para a abordagem. Dino cassou um acórdão da 6ª Turma do STJ, defendendo que seria incongruente impedir que um órgão de segurança pública atuasse em prol da segurança da população.
A decisão final do STF no Tema 656 deverá definir com maior precisão as competências das guardas municipais no contexto da segurança pública. Esse debate está intrinsecamente relacionado à necessidade de reformas nas instituições de segurança pública e justiça criminal no Brasil, essenciais para reduzir a sensação de insegurança e garantir a segurança pública como um direito social acessível a todos. A modernização das estruturas de segurança passa, inevitavelmente, pela valorização de uma abordagem que priorize os direitos dos cidadãos e as demandas das comunidades, propondo modelos de policiamento e prevenção mais integrados e menos dependentes da lógica repressiva tradicional, baseada na divisão do ciclo de policiamento entre as polícias militares e civis.
O Estatuto das Guardas Municipais, instituído pela Lei Federal nº 13.022/2014, é um marco essencial que procura dotar as guardas de uma identidade própria, que a diferencie das polícias militares. O estatuto estabelece as guardas como instituições de segurança pública de caráter civil, orientadas para a prevenção e o atendimento de proximidade, em um modelo que se distancia da visão de segurança como mera manutenção da ordem pública, e se aproxima da concepção de segurança como um direito social fundamental. A participação dos municípios na segurança pública avançou em 2018 com a aprovação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) por meio da Lei nº 13.675/2018, que formalizou essa cooperação interinstitucional e permitiu que as Guardas Municipais tenham acesso a informações estratégicas e recursos federais.
A tendência dos tribunais superiores de legitimar o poder de polícia das Guardas Municipais em tarefas de policiamento ostensivo traz, também, novas responsabilidades para os governos municipais. Cabe agora aos municípios a tarefa de assegurar as estruturas necessárias para o recrutamento, a formação contínua e a correição das guardas. Essa infraestrutura institucional é essencial para que as Guardas Municipais possam exercer suas atribuições com transparência, competência e responsabilidade, garantindo que a ampliação de suas competências venha acompanhada de condições adequadas para um trabalho eficiente e dentro da legalidade, com a responsabilização por atos de abuso de poder ou excesso no uso da força.
Para que as Guardas Municipais possam consolidar-se como instituições de segurança pública, é crucial que seu foco de atuação se oriente para a mediação e administração de conflitos de proximidade, fundamentadas na concepção de segurança como direito social. Ao invés de uma abordagem voltada exclusivamente para a manutenção da ordem pública, as guardas devem assumir um papel mais preventivo, voltado à proteção dos direitos dos cidadãos e à construção de uma convivência social pacífica. Nesse modelo, a guarda municipal atua não apenas na proteção dos bens públicos, mas também na promoção do bem-estar e da tranquilidade da comunidade, fortalecendo laços e desenvolvendo uma cultura de prevenção.
Essa nova abordagem requer investimentos em treinamento voltado à mediação de conflitos, à escuta ativa e ao desenvolvimento de habilidades de comunicação que facilitem a resolução pacífica de problemas cotidianos. Com uma atuação baseada no diálogo e na confiança mútua, as Guardas Municipais podem contribuir para reduzir a sensação de insegurança e promover uma segurança pública mais efetiva e próxima da realidade dos cidadãos.
Os governos municipais precisam também criar e dar atribuições aos conselhos comunitários de segurança, promovendo a participação cidadã e implementando mecanismos de controle social para que a comunidade possa avaliar e sugerir melhorias. Além disso, é fundamental que as corregedorias atuem de forma independente e eficiente, articuladas com ouvidorias acessíveis ao público, garantindo a responsabilização por eventuais desvios de conduta, e fortalecendo a imagem pública das guardas como instituições confiáveis e próximas da comunidade.
Ao alinhar suas práticas com os princípios de proteção aos direitos fundamentais, preservação da vida e segurança como direito coletivo, as guardas poderão conquistar a confiança da população e firmar-se como instituições essenciais para a promoção da segurança. Essa transformação, alinhada ao rigoroso cumprimento dos preceitos do Estatuto das Guardas Municipais, permitirá que essas instituições avancem sem reproduzir os problemas estruturais das polícias militares, consolidando o papel dos municípios na segurança pública.
RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO - Sociólogo, Professor da Escola de Direito da PUCRS e membro do INCT-InEAC. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
BÁRBARA RIBEIRO SOARES - Especialista em Ciências Penais e Mestranda em Ciência Criminais pela PUCRS. Residente Jurídica no Ministério Público do RS. Bolsista CAPES.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 254.
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