Quantos quilos de droga você trocaria por uma criança de 4 anos? A indagação é exatamente essa: qual quantidade de droga você desejaria tirar de circulação em troca da vida de uma criança de 4 anos?
Ou quantas armas você gostaria de receber nessa troca? Ou quantos traficantes presos?
Porque uma criança de 4 anos morreu enquanto brincava na porta de sua casa e, num mundo são, isso bastaria para concluir que nenhuma ação policial vale esse preço. Porém, como estamos no mundo em que a morte de uma criança de 4 anos é normalizada e vista como um efeito colateral, a indigna pergunta permanece: o que você espera da ação policial para fazer valer a pena essa morte?
A Baixada Santista, segundo dados do Ministério Público do Estado de São Paulo, de agosto de 2023, início da operação Escudo, até hoje presenciou 145 mortes em decorrência de intervenção policial provocadas por policiais militares em serviço. Em outras palavras, em pouco mais de um ano a atuação da Polícia Militar naquela região de 9 cidades resultou em 145 mortes, a última delas de uma criança de 4 anos que brincava na porta de casa.
“Os policiais não queriam a morte da criança”, pronuncia-se a corporação. Devemos saudar tal informação? Um alívio por ainda não atingirmos a insanidade completa de a polícia querer matar uma criança? Ou na verdade isso é o mínimo que se espera da principal força de segurança pública do Estado? Aceitando a segunda frase como verdade, conclui-se que o pronunciamento da corporação não responde nada.
“Os policiais se defenderam, são vítimas”, disseram a corporação e o Secretário da Segurança Pública. Também no ano passado e no início deste, policiais militares foram mortos em serviço na Baixada Santista, o que desencadeou as operações Escudo e Verão, responsáveis por grande parte das 145 mortes. Aqui cabe outra pergunta indigna: quantos quilos de drogas, quantas armas ou quantos traficantes presos você trocaria por uma vida de policial?
Porque também a eles, que são vítimas segundo a própria corporação, aplica-se essa lógica perversa que permeia a política de segurança pública do Estado de São Paulo. Definiu-se o enfrentamento contínuo, no território, como a principal política de enfrentamento do crime organizado na região e, nessa guerra particular, policiais militares e crianças mortas são o preço a se pagar por mais segurança.
Então retomo a indignidade: quanto vale? Quanto de droga, de arma e de traficante preso foram obtidos a cada caixão enterrado? Quão mais seguros a Baixada Santista e o Estado de São Paulo estão após 145 mortes?
Uma criança de 4 anos foi morta brincando na porta de casa em razão de um tiroteio entre policiais e dois adolescentes em novembro de 2024, 1 ano e 3 meses após o início da operação Escudo e 9 meses após o início da operação Verão. Podemos concluir que as duas operações não serviram para tornar a região mais segura? Precisamos de quantas mortes de crianças a mais para nos permitir esse raciocínio? Depois de 145 mortes, policiais militares foram recebidos a tiros, de acordo com as informações da corporação, e revidaram, vitimando uma criança que brincava na porta de casa. Essa é a segurança pública, para policiais e crianças, que as operações deixaram de legado?
O porta-voz da corporação, designado para prestar esclarecimentos à sociedade sobre esse episódio brutal da morte de uma criança de 4 anos que brincava na porta de casa, lamentou a morte e, ato contínuo, pontuou que precisamos retomar a discussão da redução da maioridade penal. Seria cômico, se não fosse cruel e trágico. A resposta à morte de uma criança de 4 anos em decorrência da ação policial é a redução da maioridade penal? A política pública de segurança proposta para evitar tal tragédia é a alteração da Constituição para punirmos penalmente adolescentes? Aprovada a redução da maioridade penal, os adolescentes que entraram em confronto com a polícia, de acordo com informações desta, largariam as armas e o crime porque, ao terem contato com o novo texto constitucional, pensariam “agora já não vale mais a pena a carreira criminal”, é nisso que estamos acreditando? A região se tornará mais segura por efeito da lei, assim como se tornou mais segura como efeito das 145 mortes?
Raciocínio idêntico embasou dezenas de alterações legais nas últimas décadas. Alterou-se a legislação aos montes, subindo penas, aumentando frações de cumprimento de pena, criando tipos penais novos. Sem dizer que todas as alterações legais foram inúteis, mas, à segurança pública, algumas dessas reduziu o crime? É possível afirmar que a alteração de determinada lei reduziu determinado crime nas últimas décadas?
Nossos problemas de segurança pública são complexos, multicausais, e, justamente por isso, pretensas soluções fáceis não funcionam. Se os problemas demandassem alteração de lei e opção pelo enfrentamento como estratégia de policiamento, eles já estariam resolvidos pelo simples fato de que são essas as nossas apostas nos últimos anos. Nós já estamos executando tais políticas com ênfase, na prática e no discurso, e não há qualquer sinal de que isso esteja dando resultado.
Insisto: meses de operações numa região. 145 mortos pela polícia. Policiais militares também mortos ou feridos nesse combate sem fim, chegando ao cúmulo, como consequência de uma guerra escolhida, estimulada e capitalizada por quem não está lá na ponta, de mais policiais estarem se suicidando do que sendo mortos nesse combate sem vencedores. Tudo isso para chegarmos aqui, num caixão de uma criança de 4 anos, alvejada na porta de casa enquanto brincava, sendo tal situação vendida como um preço indesejado a se pagar pelo plano de segurança pública implantado.
Somos levados a acreditar que esse é um efeito colateral de um remédio amargo que temos que tomar para nos curar. Curar de que mesmo? A morte de uma criança de 4 anos é efeito ou uma nova doença, mais brutal do que a anterior? Vale a pena tomar um remédio que mata mais do que a doença?
No que melhoramos desde a opção por uma guerra sem fim? O tráfico foi reduzido? Os bandidos estão menos armados? A sensação de segurança é maior do que antes? O número de crimes caiu? As organizações criminosas foram debeladas? Os policiais estão morrendo menos e se sentindo eficientes na tutela da segurança pública? Ao fim e ao cabo, o preço indigno, aquele das primeiras perguntas e já pago por uma mãe que enterra o seu filho que estava brincando na porta de casa, valeu a pena? Estamos, enfim, seguros? Atingimos, enfim, a paz perseguida?
Recebo no aplicativo a foto da lápide do menino de 4 anos morto na porta de casa enquanto brincava. Seu nome escrito no cimento, de maneira simplória. As datas de nascimento e morte tão próximas, como que gritando toda a vida pela frente que não permitimos que vivesse. Todas as brincadeiras, todos os sons, toda a vida de uma criança silenciada em nome de um plano de segurança.
Uma segurança cinza como o cimento. Uma segurança ensandecida, que pede mais corpos para entregar menos paz. Uma paz que nos tranca dentro de casa. Uma paz que nos faz desconfiar da sombra. Uma paz sem a voz da criança. Uma paz de medo.
Ághata Pedro* O(a) autor(a) pediu anonimato e o uso de pseudônimo.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 255.
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