No Brasil, a questão que se coloca atualmente é a que envolve a definição de facções. É hora de nos debruçarmos sobre essa variedade de grupos armados urbanos, no Brasil, que atuam em territórios delimitados, com níveis distintos de autoridade e violência, muitos dos quais se autointitulam ou são representados como facções, milícias ou empresas de segurança.
Será mesmo que temos 94 facções do crime organizado no Brasil, como informou em seu blog a pesquisadora Julia Quirino, do NECVU-UFRJ? Ou estará certo o Ministério da Justiça, que contabiliza 88 facções nas prisões brasileiras? Ou ainda terá razão o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que listou em mapa, há alguns anos, 67 facções? O que pensar, então, dos resultados do survey feito pelo Datafolha a pedido do FBSP e divulgado em 23 de setembro último na Folha de S. Paulo, segundo o qual 23 milhões de brasileiros (cerca de 10% da população do país) convivem com facções e milícias em seu próprio bairro de residência? Esses dados são próximos dos antecipados por outro survey – de 2022 – feito em vários países da América Latina pelo Latinobarômetro para o caso brasileiro. É isso mesmo?
Desde pelo menos 1927, quando Frederick Thrasher decidiu responder à pergunta O que é uma gangue? até às discussões atuais sobre teorias das gangues e diferentes organizações criminais, não se chegou a um consenso sobre as classificações exigidas pela enorme variedade de situações que envolvem desde as gangues juvenis clássicas estudadas pela Escola de Chicago nas primeiras décadas do século passado, passando por ordens tradicionais e familistas como as máfias sicilianas do passado recente, até as grandes empresas criminais globais da atualidade. No Brasil, a questão que se coloca atualmente é a que envolve a definição de facções. Vejamos alguns dos problemas a serem enfrentados se quisermos responder à pergunta que dá sentido a este artigo.
Em sua pesquisa com os internos do Carandiru, em meados dos anos 70, o sociólogo José Ricardo Ramalho encontrou uma única unidade identitária entre os presos denominada “a massa do crime” (Ramalho, 1979). A ruptura dessa unidade começará no início dos anos 80 no sistema penitenciário do Rio de Janeiro com o surgimento da expressão “facção” para designar um grupo dentro do sistema penitenciário que seja inimigo de outro grupo do mesmo sistema. Com o mesmo sentido de “partido” (embora não-político), a facção ganhou num segundo momento uma ambígua ideologia de defesa dos direitos dos presos, ainda em pleno regime militar e durante a transição democrática com o dístico que a tornará nacionalmente conhecida: “Paz, justiça e liberdade”. A facção vitoriosa sobre as demais, que recebeu o nome de Comando Vermelho no início dos anos 80, logo viu surgirem outras facções, o Terceiro Comando (que alguns jornalistas da época sugeriram tratar-se de uma organização promovida por policiais) e uma dissidência, a ADA – Amigos dos Amigos, criada por uma ex-liderança do Comando Vermelho.
Facção, nesse caso, designava primeiramente uma “agência de proteção” de presos criada por presos, com uma identidade comum reforçada por identidades adversárias do mesmo tipo. Em seguida, com ex-presos e novos membros, uma rede se formava entre o dentro e o fora do sistema penitenciário, com a exploração, por quadrilhas localizadas em favelas e outras áreas urbanas de baixa renda, do tráfico a varejo de drogas, principalmente cocaína, cujo preço caíra drasticamente após a entrada da Colômbia na produção. Era o “fortalecimento” do “Movimento”, para usar as expressões da época. Em São Paulo a fratura da “massa” só se dará nos anos 90 com a criação do PCC, que praticamente herdou quase toda a “massa”, uma “facção” paradoxalmente oligopólica em todo o Estado.
Um primeiro problema diz respeito à estrutura do Comando Vermelho, a mais importante e modelar facção surgida até então. Ainda pouco demonstrada, supõe-se que se trata de uma rede de quadrilhas cujos chefes, os “donos”, mantêm alianças de interesses e um esquema de proteção quando membros da rede são presos. Além disso, podem tomar decisões coletivas, inicialmente com os principais “donos” ainda presos e, depois, com “assembleias” que chegaram a reunir quase uma centena de “donos” ou de seus representantes em subúrbios do Rio. A aliança com o PCC, que não durou muito tempo, permitiu que se verificasse sua expansão para os negócios de atacado na fronteira com o Paraguai e, antes, na Colômbia.
O PCC é mais bem conhecido que o CV, graças à maior transparência de sua estrutura hierárquica, à divisão por “sintonias” e à maior sofisticação de seus investimentos. Evitando controlar diretamente o varejo das drogas e, em troca, oferecendo proteção às quadrilhas das “biqueiras”, o PCC ganhou a possibilidade de expandir-se rapidamente para além de uma estrutura de redes ou de alianças entre quadrilhas, para mirar uma forma de organização mais estável e abrangente.
A grande questão a saber é se a proliferação de “facções” nos presídios de quase todos os estados repete os modelos históricos do CV e do PCC, inclusive como suas empoderadas “filiais”, ou se se trata de um fenômeno mais pulverizado, mais desconectado e quantitativamente muito menos abrangente. Neste último caso seriam quadrilhas convencionais locais que emulam uma identidade de “facções”, mas que não possuem nem terão possibilidade de apresentar a mesma dimensão das facções históricas.
Um segundo problema, que não poderemos explorar aqui, é a existência e as transformações das chamadas “milícias” no Rio de Janeiro, inicialmente criadas por agentes e ex-agentes públicos, principalmente policiais, e agora operadas por gente que não se distingue dos traficantes convencionais das favelas e que inclusive investem, além da extorsão, com as mesmas mercadorias ilícitas tradicionais do tráfico carioca, como as drogas. Nada mais têm que as associe, como no início, a grupos armados de segurança privada ilegal. Aqui é preciso, ainda, diferenciá-las das empresas, legais, ilegais e semilegais que exploram a oferta de proteção contra traficantes, milicianos e ladrões de todos os tipos, e de grupos informais de policiais que têm na segurança privada um bico no emprego.
É hora de nos debruçarmos sobre essa variedade de grupos armados urbanos, no Brasil, que atuam em territórios delimitados, com níveis distintos de autoridade e violência, muitos dos quais se autointitulam ou são representados como facções, milícias ou empresas de segurança e que, de um modo ou de outro, ligam-se a seus membros presos em cumprimento de pena como se originários dos modelos históricos carioca e paulista. O quantitativo, o modus operandi, as ligações (ou não) com agentes públicos e políticos, o agenciamento de proteção nas prisões – tudo isso ajudará a pesquisa a melhor compreender e classificar todos esses grupos.
MICHEL MISSE - Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Justiça e Segurança Pública da UFF. Professor Titular de Sociologia aposentado do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador 1-B do CNPq.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | EDIÇÃO Nº. 255.
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