O Dia da Consciência Negra de 2024 foi o primeiro feriado nacional alusivo à memória de Zumbi dos Palmares como símbolo da resistência às diversas violências raciais. A data foi marcada pelo silêncio dos representantes das instituições policiais. Apesar da grande conquista, que foi o reconhecimento nacional da importância da data 20 de novembro, houve pouco debate nas instituições de segurança pública, mesmo sendo uma das categorias que desnudam a ilusória ideia de democracia brasileira. Portanto, empretecer o debate sobre questões raciais na segurança pública é aumentar o nível da democracia.
Poucas instituições de segurança pública debateram a questão racial em novembro. É um tema importantíssimo tanto para os agentes de segurança quanto para a população brasileira. No dia 19 de novembro, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou Um Retrato da Violência Contra Pessoas Negras 2024. O documento destaca o quanto as pessoas negras sofrem mais violência no Brasil. Segundo os dados analisados, 78% das pessoas que foram mortas violentamente eram negras; das crianças de 0 a 11 anos assassinadas, 70,3% eram negras; dos adolescentes assassinados no Brasil, 85,4% eram negros. Os dados apresentam a mesma lógica quando analisados homicídio doloso (77,8% são pessoas negras), latrocínio (60,9% são pessoas negras), feminicídio (63,6% são mulheres negras) e, entre outros dados, das pessoas mortas pelas polícias, 82,7% são negras.
Portanto, é uma temática relevante para a segurança pública. A omissão do debate é mais um dado importante para se compreender a manutenção dessas proporções, inclusive quando há redução das taxas como, por exemplo, de homicídios. Em uma década, caiu em 19,7% o número relativo a pessoas negras assassinadas; já o número de pessoas não negras assassinadas caiu 32,1%. Entretanto, o silêncio já foi quebrado e em alguns pontos há “som”, como atos pontuais que merecem destaque. Nesse sentido, coloco em relevo o processo de construção da Portaria PMDF nº 972 de julho de 2015.
Em 2014, o coronel Marcos de Araújo convidou um grupo de profissionais para elaborar um protocolo que regulamentava os procedimentos de enfrentamento aos crimes de racismo e injúria racial na PMDF. Participaram da comissão de elaboração o promotor de Justiça do MPDFT, Thiago Pierobom; o pesquisador do IPEA, Carlos Alberto dos Santos; o secretário-adjunto da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), José Alves; as então majores Graziela Salgado e Conceição Muniz, o então capitão Gilberto Sacramento e os sargentos Márcia Vieira e João Carlos, da PMDF.
A portaria enumera algumas expressões e ações que podem ser tipificadas como injúria racial e racismo, informando quais os procedimentos policiais para cada tipificação. Há ainda os procedimentos para garantir os direitos aos policiais militares vítimas dos crimes de racismo ou injúria racial em atividade policial. Determina ainda que o Departamento de Educação e Cultura (DEC) da PMDF inclua nos currículos dos cursos de formação, aperfeiçoamento, extensão e especialização, no que couber, disciplinas e atividades pedagógicas, visando ao aprimoramento técnico dos policiais. O artigo 13 da portaria determina ainda que o DEC elabore um ementário das ações adotadas pela PMDF referentes ao enfrentamento à discriminação racial. Essa relação deveria ser atualizada anualmente, e apresentada no dia 20 de novembro de cada ano.
O primeiro ponto a ser destacado é a pessoa que interpretou a “janela de oportunidade” e conduziu todo o processo, o coronel Marcos de Araújo, um homem negro policial militar e acadêmico. Coloco em relevo nesta sequência as informações, porque são as partes constitutivas que contribuem para a compreensão do processo. Enquanto policial militar, trabalhou em unidades operacionais e de gestão administrativa. Em sua produção acadêmica há temas como mobilidade social e organizações militares; discriminação na PMDF e a trajetória de policiais negros; multiculturalismo ou discriminação na PMDF; racismo institucional na PMDF, entre outros, que demonstram que a temática sobre etnia e raça são orientadoras também das motivações profissionais. Debater a temática internamente e poder convidar representantes de outras instituições e da sociedade civil demandou grande habilidade do coronel De Araújo, inclusive para a sanção da portaria no colegiado do comando e sua divulgação.
Apesar do relevante trabalho do coronel e doutor Marcos de Araújo e da comissão para a publicação da portaria, sabia-se que era a portaria possível, e não contemplava toda a dinâmica do racismo na segurança pública, pois há as práticas institucionalizadas e as relações estruturais de que as instituições de segurança pública são protagonistas de diferentes formas, seja pelo método, pelas técnicas ou pela política de segurança pública, inclusive como vítima, pois quase 70% dos assassinatos de policiais militares e civis são negros.
Essas práticas institucionalizadas também têm diferentes consequências para os próprios agentes de segurança pública. Há primeiro o processo de construção da identidade policial que, no caso da identidade militar, é proeminente e desassocia o policial da própria comunidade, dos laços das primeiras socializações e forja a separação entre o militar e o paisano em um contexto de guerra contra o criminoso. Determinados territórios são hostis. O processo sócio-histórico construído pela branquitude estereotipou as danças, as roupas, os cortes de cabelo, a música, a religião e o território não-brancos como marginalizados.
Desta forma, construiu-se uma lógica de vigilância em territórios não-brancos e de prestação de serviço nos territórios brancos. A área de servir e a área de intervir. Para os policiais brancos, o processo é naturalizado, pois o racismo institucionalizado historicamente já construiu os estereótipos e são “instrumentalizados” cotidianamente. Entretanto, os policiais que outrora eram abordados, vigiados e revistados nos bancos, supermercados e nos espaços públicos agora revistam, abordam e vigiam.
Internamente, redunda no que a pesquisadora Andresa Pereira Sena chama de solidão étnica, porque os policiais negros não têm espaço institucional para questões étnico-raciais e sua identidade negra é isolada, e com poucos compartilhamentos das experiências raciais e, apesar de ser reconhecido como negro por todos, é um policial.
Em uma análise geral, são essas relações que orientam tanto as práticas subjetivas dos agentes e são evidentemente percebidas como discriminatórias, assim como as políticas de segurança pública que direcionam ações de intervenções em territórios não-brancos com uso de força letal e tem mortes de civis como efeito colateral e uso de diversos métodos e técnicas para diminuir a possibilidade da letalidade em territórios brancos.
Todavia, o caso do processo de construção da portaria, mesmo não tendo “força” para a discussão interna do processo da mudança da formação da identidade e da objetividade de procedimentos para intervenções semelhantes em diferentes territórios e grupos de pessoas, permite compreender a importância da participação da sociedade civil e de mulheres e homens negros sensibilizados com questões raciais em cargos de gestão e comando porque modificam os ritos internos e externos, aumentando, inclusive, o nível de garantias de direitos e, por consequência, o “nível” da democracia, porque, por enquanto, o silêncio da temática na segurança em novembro de 2024 é um dado que demonstra o quanto que os fatos apresentados em dados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública repercutem nos processos decisórios, nas vidas dos policiais e na sociedade civil e a expectativa de mudança.
GILVAN GOMES DA SILVA - 1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).
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