Há algo de paradoxal na idéia de avançar para garantir direitos e, ao mesmo tempo, retirar do Estado uma das ferramentas necessárias para proteger quem mais precisa.
A Súmula 676 do Superior Tribunal de Justiça, ao declarar que não é mais possível ao juiz decretar ou converter a prisão em flagrante em preventiva de ofício, reflete um movimento reformista. Um movimento que, embora bem-intencionado em seu cerne, parece ignorar uma das mais cruéis manifestações de desigualdade: a violência de gênero.
Violência de gênero não é um episódio isolado. É uma estrutura. Uma realidade que transcende o crime, reverberando nos espaços públicos e privados, nos lares e nas instituições, no cognitivo e no simbólico.
O sistema, que deveria proteger, frequentemente se torna cúmplice ao perpetuar uma organização social patriarcal e machista. Aqui, o princípio da equidade deveria atuar com mais força, reconhecendo que a isonomia formal da lei nem sempre é suficiente para corrigir desigualdades materiais.
A limitação imposta pela súmula retira do Estado parte dessa força. Ao exigir que a decretação de uma prisão preventiva dependa da provocação do Ministério Público ou da defesa, corre-se o risco de que a justiça seja capturada pelas mesmas estruturas que sustentam a violência que deveria combater.
Afinal, quantos advogados ou até mesmo advogadas conseguem identificar, em sua plenitude, a violência de gênero? Quantos promotores, operando sob o peso de parâmetros patriarcais e machistas, enxergam na agressão à mulher mais do que um conflito interpessoal? O resultado é um silenciamento, uma omissão legitimada pela forma da lei.
Não se pode ignorar que o Pacote Anticrime trouxe reformas necessárias ao sistema penal. Ele aprimorou mecanismos de combate à corrupção, fortaleceu garantias processuais e consolidou avanços no sistema acusatório. Mas é também verdade que ele não foi pensado para lidar com a especificidade da violência de gênero. Foi cunhado sob a perspectiva de um sistema que ainda trata a violência como um desvio, uma exceção, e não como a regra estrutural que permeia nossas relações sociais.
Quando a lei se distancia da realidade, ela se torna insuficiente. Ao vedar ao juiz a possibilidade de agir de ofício, a Súmula 676 deixa descobertas mulheres que, sem o amparo de uma defesa comprometida ou de um Ministério Público atento, ficam à mercê de agressores que se beneficiam da inação. O princípio da imparcialidade é vital para um sistema justo, mas não pode ser interpretado como um princípio absoluto em detrimento da proteção de direitos fundamentais.
O desafio é encontrar um ponto de equilíbrio. Um sistema que fortaleça o acusatório sem enfraquecer a tutela de quem vive sob a constante ameaça da violência estrutural. Um sistema que compreenda que, em certos contextos, a omissão também é violência.
Enquanto isso, seguimos debatendo, esperando que, um dia, a justiça deixe de ser um conceito abstrato e se torne, finalmente, uma experiência concreta para todas as mulheres.
Lisdeili Nobre é:
Doutoranda em Políticas Sociais e Cidadania, Delegada de Polícia Civil, Docente do Curso de Direito na Rede UNEX, Cronista de diversos Blogs, Abolicionista Penal, Feminista e Ativista social, Membro da Academia Grapiúna de Artes de Letras, ocupando a cadeira n.º 07 e apresentadora do Política sem Mistério transmitido pela TV i
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