É alarmante perceber o baixo investimento na produção de provas e na análise de vestígios de crimes, essenciais para comprovar a ocorrência de delitos, identificar envolvidos e garantir a efetividade da segurança pública.
Entendendo que o monitoramento do orçamento público permite a visualização não só do fluxo de recursos, mas, sobretudo, ilustra mapas de poder, propomos neste artigo um debate sobre os dados disponibilizados pelo JUSTA em seu visualizador interativo recém-lançado e que evidenciam as prioridades orçamentárias e os sucateamentos observados entre os investimentos de 22 unidades federativas nas polícias, no sistema prisional e em políticas para egressos, alcançando 93% do total dos orçamentos estaduais, ou R$ 1,1 trilhão de reais.
A plataforma evidencia como o orçamento se traduz em um funil de investimentos, ao mostrar que, em média, os estados gastam 7% de seus orçamentos com as polícias, 1,8% com sistema prisional e apenas 0,001% com políticas para egressos.
Os dados também nos mostram como o investimento nas forças policiais se concentra no trabalho ostensivo das Polícias Militares, que ficam com 59,5% dos recursos, deixando a investigação em segundo plano, com 22,9% do orçamento sendo direcionado às Polícias Civis, e subfinanciando a dimensão técnico-científica, que recebe apenas 2,8%. Do total, 14,8% das despesas foram classificadas como compartilhadas[1].
Em um cenário em que estados brasileiros chegam a gastar 10,6% de seus orçamentos com polícias e 3,3% com sistema prisional (Rio de Janeiro e Santa Catarina, respectivamente) e no máximo 0,01% com políticas para egressos (Ceará), é alarmante perceber o baixo investimento na produção de provas e na análise de vestígios de crimes, essenciais para comprovar a ocorrência de delitos, identificar envolvidos e garantir a efetividade da segurança pública.
Um breve registro sobre a metodologia: o JUSTA adota uma perspectiva conservadora e, além da análise das peças orçamentárias dos próprios estados, concilia os dados com as bases do Tesouro Nacional e SICONFI. Excluímos dos cálculos a aplicação direta entre órgãos e as despesas com aposentadorias e pensões. Os resultados são informados aos estados antes de sua divulgação, para que eventuais correções sejam feitas antes da publicação.
O JUSTA dados detalha informações de todas as regiões do país e, por se tratar dos estados com maior percentual orçamentário e valor absoluto consumido com as forças policiais, respectivamente, usaremos os casos do Rio de Janeiro e de São Paulo como exemplos.
São Paulo foi o estado que mais gastou com sistema penitenciário (R$4,8 bilhões) e polícias (R$15,6 bilhões), em valores absolutos, representando 21% e 24% do total dos gastos de todas as unidades federativas analisadas com polícias e sistema prisional, respectivamente. O JUSTA selecionou funções de inegável importância no orçamento de São Paulo que, somadas, não alcançam o valor destinado à manutenção do sistema penitenciário deste que é o estado com maior população prisional do país para que possamos ver o quanto custa esse encarceramento.
Rio de Janeiro é o estado que mais gastou, proporcionalmente (10,6%), com as polícias em 2023. Trata-se do único estado que investe mais em polícias do que em educação – e, como vemos abaixo, mesmo quando somados os valores investidos em trabalho, energia e outras áreas, não se alcança o total destinado às forças policiais.
Ao analisar os mais de R$10 bilhões gastos com forças policiais no Rio, vemos que 78,5% do total ficam com a Polícia Militar, 20,8% com a Polícia Civil e 0,5% são despesas compartilhadas. Mesmo sem que tenha havido, ainda, a criação de uma polícia técnico-científica autônoma no estado, chama a atenção a inexistência de reserva de qualquer orçamento para essa relevante frente de atuação. A importância da área poderia se traduzir, no mínimo, na criação de despesas e indicadores específicos no orçamento.
Quando pensamos nos desafios que vinculam a nossa experiência democrática às práticas de segurança pública, os dados parecem dialogar diretamente com dois dos maiores gargalos.
A força política das polícias se revela e se reforça na distribuição do orçamento, aprovado por legislativos cada vez mais protagonizados por policiais que exercem mandato e que, via orçamento, alimentam de modo contínuo a sua relevância orçamentária e, portanto, política.
Na mesma medida, a análise do orçamento revela o esqueleto do poder das facções criminais, que no Brasil podem ser chamadas de facções prisionais: o desinvestimento na produção de prova, na busca por materialidade e autoria, coloca em xeque a legitimidade do encarceramento massivo há anos naturalizado no país. Não bastasse o vício na porta de entrada, o cumprimento da pena se dá em um sistema prisional que vive, como já reconheceu o próprio STF, em um estado de coisas inconstitucional. À porta de saída, contudo, se reserva o cenário de maior desalento e falta de recursos, sem que haja, rigorosamente, qualquer investimento significativo em políticas para egressos, que permitiriam vislumbrar mudanças de rota.
A análise dos dados nos permite compreender que o processo decisório que envolve a alocação do dinheiro público na justiça criminal é importante vetor das mais de 70 facções que prosperam no Brasil, e a inversão do funil de investimentos na segurança pública e no sistema prisional é urgente prioridade.
[1] Com relação às polícias, vale dizer que despesas relacionadas com corpo de bombeiros, departamentos de trânsito e defesa civil são excluídas e ressaltar que quando não há marcadores orçamentários aptos a indicar, com exatidão, a distribuição dos gastos entre as diferentes forças policiais, os recursos são classificados como “despesas compartilhadas”.
LUCIANA ZAFFALON - Diretora-executiva do JUSTA.
FELIPPE ANGELI - Coordenador de advocacy do JUSTA.
TACIANA SANTOS DE SOUZA - Coordenadora de pesquisas de orçamento do JUSTA.
EDIÇÃO N.259 - fontesegura.forumseguranca.org.br
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