Caberia somente ao Ministério da Igualdade Racial a formulação de políticas contra o racismo? Por que o Ministério da Fazenda, o da Defesa, o da Educação ou o do Desenvolvimento Agrário não deveriam se engajar também?
Dando continuidade às reflexões iniciadas em nosso texto anterior[1], abordaremos agora mais uma forma de morte indireta da população negra: a necessidade de somente pessoas negras lutarem contra o racismo.
Holmes comenta que, por mais que as pessoas negras façam sua parte na luta contra o racismo, elas não possuem o monopólio dos esforços para que haja mudanças na questão racial. Ele nota que diversos textos e opiniões insistem na narrativa que “se pelo menos as pessoas negras fizessem a parte delas…”, “as pessoas negras deveriam fazer tal coisa….” e afins seriam o suficiente para reduzir a desigualdade racial. Assim, a responsabilidade por cobrar políticas públicas, formular alternativas, pensar em reformas seria somente das pessoas negras. Embora não seja um raciocínio específico para a segurança pública, podemos aproveitá-lo nesse sentido.
O bimestre final de 2024 está sendo farto em imagens sobre abusos, inclusive com resultados letais, contra pessoas negras. Conforme os dados anualmente produzidos a respeito da questão racial e segurança pública no Brasil pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública [2], tais imagens são apenas amostras ínfimas do que os dados demonstram, ano após ano, sobre a vitimização da população negra na segurança pública.
Utilizado o raciocínio do Holmes, falta ação por parte das pessoas negras contra esse quadro? Do lado da sociedade civil organizada, somente em São Paulo, houve a tradicional Marcha da Consciência Negra, sempre no dia 20 de novembro de cada ano, e mais um protesto do movimento negro no dia 4 de dezembro, dada a inundação de imagens a que nos referimos. No Poder Legislativo, sempre temos alguns parlamentares, ligados direta ou indiretamente à questão racial ou à desigualdade social no geral, que fazem moções de repúdio ou formulam propostas que não vingam por falta de aderência da situação ou da presidência da Casa. O Poder Judiciário, recentemente, publicou o resultado de uma pesquisa sobre racismo no sistema de justiça[3], ressaltando não só a sub-representatividade nos quadros de magistrados e servidores como outras formas. É exemplo delas o atendimento pior quando a pessoa atendida é negra. Enquanto isso, o Poder Executivo Federal lançou o “Plano Juventude Negra Viva” em março de 2024, com diversas propostas para reduzir a violência e as vulnerabilidades sociais da população negra.
Se temos tantas iniciativas de pessoas negras, por que ainda assim poderíamos considerar uma morte indireta? Notem que, embora tenhamos honrosas exceções, existe sempre a aparente necessidade de pessoas negras serem ativas para promover essas mudanças. Resgatando-nos de outros temas de políticas públicas, temos instituições e movimentos que não precisam ser compostos por vitimizados para lutar pela causa: os movimentos de alfabetização e melhoria da educação nunca foram formados exclusivamente por pessoas analfabetas ou com baixa escolaridade; as entidades que promovem a preservação do meio ambiente não são compostas apenas por vítimas imediatas de danos ambientais; nas lutas históricas pela implementação do SUS, contra a estigmatização do HIV e pela reforma antimanicomial, diversos atores sociais engrossavam as fileiras, não só pacientes e familiares destes.
Nos exemplos citados dos três Poderes, em regra, houve o protagonismo de pessoas negras. No caso do “Plano Juventude Negra Viva”, por exemplo, a iniciativa é exclusiva do Ministério da Igualdade Racial (MIR).
A sobrecarga que mata indiretamente, aproveitando a reflexão de Holmes, é pensarmos nas ausências envolvendo a vitimização racial, especialmente na segurança pública. No caso do governo federal, somente ao MIR cabe formular as políticas contra o racismo? Por que não o Ministério da Fazenda, Defesa, Educação ou Desenvolvimento Agrário? Não é falta de conexão dos temas das pastas com a questão racial, sendo pacífica a possibilidade de formulação de convênios e termos de cooperação desses e outros ministérios com o MIR, se for o caso.
No âmbito legislativo, temos defendido, ainda precariamente, a obrigatoriedade de avaliação de impacto racial na formulação de políticas: o que a política proposta, ainda em projeto de lei, pode impactar a questão racial, à semelhança dos casos em que são estudados os impactos ambientais, guardadas as devidas proporções? Enquanto não houver redução do racismo, essa avaliação deveria ser obrigatória.
Como nosso tema principal é a segurança pública, cabe questionarmos a ausência do protagonismo dos gestores de segurança pública na luta contra desigualdade racial. Como é uma ausência, temos diversos elementos para serem cobrados: como está a representatividade da população negra nos quadros de servidores operacionais e nos quadros de carreiras de comando? Está proporcional à população do Estado, especialmente nos quadros de comando? Qual a abordagem do tema racial nos cursos de formação e aperfeiçoamento das carreiras? Qual a participação social nas organizações policiais nesse tema: existem canais de escuta, denúncia, ferramentas de transparência, monitoramento e avaliação nas organizações policiais?
Enquanto houver a sobrecarga da luta contra o racismo somente nas costas das pessoas negras, podemos contabilizar isso como uma das causas de mortes indiretas.
[1]Disponível AQUI:
[2]O último relatório está disponível AQUI:
[3]“Características do racismo (re)produzido no sistema de justiça: uma análise das discriminações raciais em tribunais estaduais”. Disponível AQUI:
Lívio José Lima-e-Rocha - Investigador de Polícia e Professor de Gestão Pública na Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mestre em Gestão e Políticas Públicas (FGV) e doutorando em Políticas Públicas (UFABC). Pesquisador no Grupo de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (Mackenzie). Membro sênior e Conselheiro Fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
fontesegura.forumseguranca.org.br/Edição N.260
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