Na Amazônia, o sistema de comércio por aviamento consiste em uma rede de escambo e crédito que conecta os extrativistas aos comerciantes regionais. Membros da facção passaram a articular um sistema de dívidas, em que produtos ilícitos, como crack, cocaína e maconha, são trocados por tartarugas, madeira, farinha, pirarucu e outros produtos das florestas.
No coração da Amazônia brasileira, o Médio Juruá é uma região exuberante, com vastos recursos naturais, caracterizada por seu difícil acesso e relativa preservação. A área é banhada pelo sinuoso rio Juruá, que conecta municípios como Carauari e Eurunepé, a Terra Indígena Kulina, a Reserva Extrativista do Médio Juruá e dezenas de comunidades ribeirinhas. No entanto, as densas florestas da região enfrentam ameaças crescentes, como a garimpagem de ouro, a exploração de petróleo e gás, e a expansão do narcotráfico operado por facções criminosas.
Os dilemas socioambientais enfrentados pelos povos do Território do Médio Juruá (TMJ) refletem os desafios vividos por toda a Amazônia em um cenário de crises múltiplas: cheias e secas intensas, constantes assédios e violências e, na última década, a emergência de um “mundo do crime faccionado”. Esses grupos — as chamadas facções —, originados nos sistemas prisionais do Sudeste e envolvidos em atividades econômicas ilícitas, operam por meio do controle territorial armado, colocando em risco a conservação de espécies de tartarugas e comprometendo os sistemas comunitários de manejo sustentável de recursos. Além disso, ressurge a figura histórica do mascate, ou “regatão,” descrito como aquele que “comerciava impiedosamente e regateava sempre” (Hemming, 2009, p. 316), agora sendo reinventado pelo Comando Vermelho (CV) no Médio Juruá.
Esta interpretação é baseada em materiais coletados durante uma expedição realizada de 4 a 13 de julho de 2024 no Território do Médio Juruá, a convite da Operação Amazônia Nativa (OPAN) e da Associação de Produtores Rurais de Carauari (ASPROC), que promoveram o “II Encontro de Lideranças do Médio Juruá para o Monitoramento de Direitos e Salvaguardas Socioambientais.”
Durante o evento, 85 lideranças, em sua maioria ribeirinhos, viveram em um barco que serviu de moradia e transporte ao longo do rio Juruá. As atividades contaram com a participação de lideranças extrativistas e indígenas Kulina, na base Campina, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Uacari. Foram realizadas entrevistas focais abordando a expulsão de membros do Comando Vermelho de uma praia de desova de tartarugas.
O Médio Juruá: Amazônia profunda sob ameaça
O território do Médio Juruá é uma das regiões mais isoladas da Amazônia, cuja geografia de difícil acesso tem sido um fator importante para sua relativa preservação ao longo do tempo, apesar da intensa exploração durante o ciclo da borracha e das prospecções da Petrobrás nos anos 1980. A criação da Reserva Extrativista do Médio Juruá, em 1997, marcou um ponto crucial para a gestão sustentável da biodiversidade local. As populações tradicionais dependem da extração de produtos naturais e da agricultura de subsistência. No entanto, essa paisagem enfrenta uma crescente pressão de interesses econômicos, sobretudo por frentes de exploração mineral, como o garimpo de ouro, e pela extração de petróleo e gás fóssil.
Por longos trechos do rio, há requisições para pesquisa e lavra garimpeira. Relatos indicam que balsas de garimpo têm operado ilegalmente na região, ameaçando acordos comerciais de peixes negociados pelas associações locais. Ribeirinhos queimaram uma draga que operava ilegalmente no território e expulsaram outra antes do início das atividades de mineração. Esse cenário de pressões ambientais, exacerbado pelas mudanças climáticas, sobrepõe-se à presença crescente de membros do Comando Vermelho, que passaram a operar na região.
Em junho de 2021, Carauari, assim como outros cinco municípios do interior do Amazonas, foi alvo do Comando Vermelho, que promoveu ataques incendiários contra ônibus e prédios públicos em retaliação à morte de um de seus membros durante uma ação da Polícia Militar. Esses ataques marcaram um episódio de violência intensa promovida pela facção no estado, com Manaus sitiada em um momento crítico da crise sanitária da Covid-19. Além disso, o aeroporto de Carauari tornou-se um ponto estratégico para o tráfico de drogas, com apreensões frequentes de grandes quantidades de cocaína. Em abril de 2018, por exemplo, foram apreendidos 458 kg de drogas. Novas apreensões similares foram realizadas em 2020 e 2021.
Um dos entrevistados, que declarou conhecer pessoalmente membros da facção, relatou que a presença do CV em Carauari se intensificou desde 2018. Ele afirmou que todas as comunidades ribeirinhas entre Carauari e Itamarati têm enfrentado problemas com o narcotráfico, embora poucas pessoas assumam isso publicamente.
Invasão dos tabuleiros de quelônios pelo Comando Vermelho
As comunidades do Médio Juruá têm se destacado pelo manejo sustentável de seus recursos naturais, com iniciativas que incluem roças e a gestão comunitária de peixes, como o pirarucu, por meio de acordos de pesca que garantem a conservação dos estoques e a comercialização sustentável. A preservação dos tabuleiros — praias onde quelônios como a Podocnemis expansa (tartaruga-da-Amazônia) desovam — é outra prática voluntária que tem sido realizada por décadas pelos ribeirinhos. Além disso, expedições de monitoramento podem envolver órgãos governamentais e pesquisadores universitários. Reuniões são realizadas nas comunidades para conscientização e escolha de vigias (Andrade, 2015).
Em 5 de julho de 2024, um vigia avistou a movimentação de quatro pessoas armadas em um tabuleiro de desova de quelônios. Preocupado, ele solicitou apoio de duas lideranças comunitárias, e juntos abordaram os intrusos à distância. Inicialmente, o grupo concordou em deixar o local. Contudo, retornaram pouco tempo depois. Os comunitários, aproveitando um momento em que os acampamentos e barcos estavam sem supervisão, confiscaram os pertences dos invasores, incluindo peixes, madeira e balanças de precisão.
No dia seguinte, dez ribeirinhos armados foram mobilizados para remover os invasores de forma definitiva. Sem suprimentos e encurralados, os quatro intrusos se renderam. Eles foram escoltados em uma lancha até a Polícia Militar em Carauari, em uma viagem que durou sete horas de navegação. Esse episódio foi relatado em uma assembleia pública durante o encontro de lideranças locais. Entrevistas focais indicaram que três homens e uma mulher estavam entre os escoltados, embora o acampamento contasse com cinco mosquiteiros, sugerindo a presença de até seis pessoas no local. Além dos quatro no barco, dois outros membros da comunidade, provavelmente intermediários nas vendas ilícitas, estariam envolvidos.
O sistema de aviamento: passado e presente
O que tais pessoas faziam ali? Roubando ovos e tartarugas? O evento é a expressão de um fenômeno mais complexo. Na Amazônia, o sistema de comércio por aviamento consiste em uma rede de escambo e crédito que conecta os extrativistas aos comerciantes regionais. Historicamente, os regatões eram os principais intermediários desse sistema, especialmente durante o Ciclo da Borracha. As entrevistas indicam que membros do CV em Carauari passaram a atuar como regatões modernos, articulando um sistema de dívidas pagas por meio de escambo. Produtos ilícitos, como crack, cocaína e maconha, são trocados por tartarugas, madeira, farinha, pirarucu e outros produtos das florestas. A capilaridade das facções e sua adaptação às práticas ilícitas tradicionais impressionam. Embora cooperativas e associações locais venham lutando há décadas contra essa forma de exploração, as ações do Comando Vermelho indicam uma crescente fragilização dessas iniciativas.
Sob a pressão de múltiplos assédios e ameaças, a coesão comunitária tende a se enfraquecer. Esse enfraquecimento ocorre tanto pela cooptação de jovens para atividades ilícitas e violentas quanto pelo assédio econômico de grandes empresas, além da judicialização de ações de autodefesa, como a queima de balsas de garimpo. Esses fatores, combinados, têm desestruturado as bases de resistência das comunidades, tornando-as mais vulneráveis à exploração e à influência de práticas criminais.
O economista Roberto Santos (2019) apontou que o aviamento é um fenômeno econômico que tende a se reproduzir na região sempre que determinadas características estão presentes: recursos naturais de difícil acesso, técnicas de produção rudimentares e baixa monetarização das trocas. Esse sistema é o modelo econômico mais comum na Amazônia para o extrativismo vegetal e animal, frequentemente controlado de forma armada.
A figura do regatão é descrita por McGrath (1999) como uma figura contraditória, por ser tanto um agente civilizador quanto um atravessador sem escrúpulos. Atuam na clandestinidade, explorando a complexidade da rede de bacias hidrográficas da Amazônia, aproveitando-se da mobilidade sazonal das populações ribeirinhas: “Necessário, mas temido. Negociante, mas pirata em potencial, saqueador das coisas alheias. A voz meiga, o coração mau.” (Henrique e Morais, 2014, p. 58)
Esse modelo econômico, profundamente enraizado na Amazônia, perpetua uma moralidade própria, sustentada por uma disciplina que vai além das questões meramente econômicas. Estudos de Amílcar Tupiassú (apud Santos, 2019) e Charles Wagley (1977) demonstram que, mesmo após mais de cem anos, elementos do Sistema de Aviamento ainda explicam as relações entre os centros urbanos e as áreas extrativistas, mediando boa parte da estrutura social da Amazônia. Ao recorrer à literatura sobre o tema, destacam-se três características preocupantes que se alinham com as práticas já conhecidas de facções em outros territórios:
O Sistema de Aviamento, em diversas circunstâncias, era sustentado por um regime de controle armado nos seringais, assegurando que os extrativistas não escapassem sem pagar suas dívidas (Santos, 2019, p.190).
Segundo Oswaldo Cruz, em 1910, o vício dos extrativistas no álcool era uma ferramenta utilizada para facilitar o processo de dominação (Cruz apud Santos, 2019, p. 193).
O Sistema de Aviamento impunha aos ribeirinhos e indígenas uma escolha brutal: participar do sistema ou enfrentar a morte (Cardoso, 1996, p. 62).
Esses aspectos revelam a continuidade de uma lógica de exploração que, embora adaptada, ao que tudo indica, continua a moldar as dinâmicas de poder e dominação na Amazônia contemporânea. Segundo relatos, membros do CV afirmam que “nas comunidades é onde está o dinheiro [e não em Carauari],” indicando a lucratividade das trocas de drogas por produtos da floresta.
Referências Bibliográficas:
Andrade, P. C. M et ali. Projeto Pé-de-pincha: conservação e manejo de quelônios. Manaus: Unisol/UFAM, 2015.
Hemming, J. Fronteira Amazônica. São Paulo: EdUSP, 2009.
Henrique, M. C. e Morais, L. T. Estradas líquidas, comércio sólido: índios e regatões na Amazônia (século XIX). Revista de História, São Paulo, n. 171, p. 49–82, 2014.
McGrath, D. Parceiros no crime. Novos Cadernos NAEA vol. 2, nº 2 – dezembro 1999.
Meira, M. A. F. A persistência do aviamento. Rio de Janeiro: UFRJ, tese, 2017.
Oliveira, R. C. O índio e o mundo dos brancos. Campinas: Editora Unicamp, 1996.
Santos, R. História econômica da Amazônia (1800-1920). Manaus: Valer, 2019.
Wagley, C. Uma comunidade amazônica. São Paulo: Editora Nacional, 1977.
* Este texto foi originalmente publicado no estudo Cartografias da Violência na Amazônia – 3ª edição. A íntegra do documento pode ser acessada AQUI:
*RODRIGO CHAGAS - Sociólogo e professor de Ciências Sociais na Universidade Federal de Roraima. Membro do Programa de Pós-graduação Sociedade e Fronteiras. Atua como pesquisador junto ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
fontesegura.forumseguranca.org.br/Edição N.260
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