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Da regulamentação do uso da força por profissionais de Segurança Pública

A publicação do Decreto nº 12.341, de 23 de dezembro de 2024, que regulamenta a Lei nº 13.060/2014, intensificou as discussões sobre a regulamentação do uso da força por profissionais de segurança pública no Brasil.

Carlos Nascimento
Por: Carlos Nascimento Fonte: conjur.com.br
06/01/2025 às 14h27 Atualizada em 06/01/2025 às 14h34
Da regulamentação do uso da força por profissionais de Segurança Pública

As reações ao texto presidencial revelam uma preocupante dicotomia: de um lado, a necessidade de profissionalização das forças de segurança; de outro, resistências políticas que, sob o pretexto de defender a autonomia policial, parecem ignorar aspectos técnicos e jurídicos fundamentais da nova regulamentação.

Em manifestações veiculadas pela imprensa entre 24 e 26 de dezembro de 2024, governadores classificaram o decreto como “presente de Natal” para o crime organizado e “chantagem explícita contra os estados”, além de questionarem sua constitucionalidade por supostamente interferir na autonomia dos estados e do Distrito Federal. Tais posicionamentos, embora politicamente expressivos, carecem de sustentação jurídica e ignoram o conjunto normativo que fundamenta a regulamentação do uso da força, incluindo a Constituição, tratados internacionais de direitos humanos e a legislação federal correlata.

Dessa forma, o presente artigo demonstra que o Decreto nº 12.341/2024, longe de representar um “engessamento” das forças policiais ou uma violação da autonomia federativa, estabelece parâmetros técnicos necessários para a modernização da segurança pública brasileira. Assim, a análise evidencia como o decreto harmoniza a efetividade da atuação policial com a proteção dos direitos fundamentais, contribuindo para a profissionalização das forças de segurança.

Fundamentação constitucional

A constitucionalidade do Decreto nº 12.341/2024 sustenta-se em múltiplos fundamentos que confirmam sua adequação ao sistema federativo brasileiro.

Primeiramente, o ato normativo encontra respaldo direto no artigo 84, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, que confere ao presidente da República a competência privativa para regulamentar leis e dispor sobre a organização da administração federal. No caso em análise, o decreto regulamenta a Lei nº 13.060/2014, que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, exercendo regularmente o poder regulamentar sem qualquer inovação na ordem jurídica.

O argumento de violação ao artigo 144 da Constituição também não prospera. Embora o dispositivo estabeleça a repartição de competências entre as forças de segurança, o texto constitucional também atribui à União papel fundamental na definição de diretrizes para a área, especialmente considerando a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) e a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II). Ademais, o § 7º do próprio artigo 144 prevê expressamente que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”.

A seu turno, o condicionamento dos repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional à observância do decreto, longe de configurar “chantagem explícita contra os estados”, materializa o federalismo cooperativo brasileiro. O mencionado modelo encontra fundamento nos artigos 161, II, e 165 da Constituição, que preveem a normatização da entrega de recursos federais e sua vinculação a programas específicos.

Nessa perspectiva, a experiência brasileira demonstra a consolidação do modelo em diversos sistemas nacionais de políticas públicas. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado pela Lei nº 8.080/1990, os repasses federais são condicionados à observância de diretrizes nacionais e ao cumprimento de metas pactuadas. Do mesmo modo, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) operam com mecanismos de condicionantes que vinculam as transferências federais à adesão a programas nacionais e ao monitoramento sistemático de resultados.

Aliás, a própria Lei nº 13.756/2018, que regulamenta o Fundo Nacional de Segurança Pública, já estabelece condicionantes para o repasse de recursos aos estados, como a existência de Conselho Estadual de Segurança Pública e plano de segurança alinhado com o Plano Nacional. De modo similar, a Lei Complementar nº 79/1994, que institui o Fundo Penitenciário Nacional, também prevê condicionantes específicas para as transferências.

O Decreto nº 12.341/2024 aperfeiçoa, portanto, o federalismo cooperativo em matéria de segurança pública, instituindo mecanismos constitucionalmente adequados para a implementação coordenada de uma política nacional. Assim, o regulamento equilibra o respeito às autonomias regionais com a necessária padronização de procedimentos, contribuindo para a profissionalização das forças de segurança e a proteção dos direitos fundamentais em todo o território nacional.

Sistema integrado de regulamentação

O Decreto nº 12.341/2024 estabelece um sistema integrado que harmoniza princípios fundamentais, garantias profissionais e mecanismos de controle para o uso da força em segurança pública.

Os princípios estabelecidos no artigo 2º do decreto — legalidade, precaução, necessidade, proporcionalidade, razoabilidade, responsabilização e não discriminação — constituem alicerces fundamentais para a atuação policial que se materializam em diretrizes operacionais concretas, como a vinculação do uso da força à “consecução de um objetivo legal” e a exigência de planejamento que “minimize o uso da força”.

O decreto prevê o conceito de uso diferenciado da força em seu artigo 3º, estabelecendo que a força “deverá ser utilizada de forma diferenciada, com a seleção apropriada do nível a ser empregado, em resposta a uma ameaça real ou potencial”. Esta diferenciação no uso da força é operacionalizada por meio de diretrizes específicas que privilegiam a comunicação e a negociação, situando o emprego de arma de fogo como medida de último recurso. Além disso, o decreto delimita situações específicas em que o uso de arma de fogo não é legítimo, como contra pessoa desarmada em fuga ou veículo em bloqueio que não represente risco imediato.

Em contraposição à narrativa de cerceamento da atividade policial, o Decreto nº 12.341/2024, na verdade, institui garantias que fortalecem a atuação dos profissionais de segurança pública, a exemplo de: treinamento anual obrigatório em horário de serviço, disponibilização de equipamentos de proteção individual e de pelo menos dois instrumentos de menor potencial ofensivo por agente, e programas continuados de atenção à saúde mental para profissionais envolvidos em ocorrências de alto risco.

Por sua vez, o papel coordenador do Ministério da Justiça e Segurança Pública, extraído do artigo 5º do decreto, abrange desde o financiamento de ações até o desenvolvimento de materiais técnicos de referência, incluindo consultoria especializada aos órgãos estaduais. Particularmente relevante é a previsão de desenvolvimento de materiais específicos para situações críticas como uso de algemas, busca pessoal e domiciliar, construídos com participação dos órgãos de segurança.

Destaca-se, ainda, que o controle social é fortalecido pela criação do Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força (CNMUDF), com participação garantida da sociedade civil. Suas atribuições incluem a produção de relatórios analíticos, o acompanhamento da implementação do Plano Nacional de Segurança Pública e a proposição de indicadores de monitoramento. Além disso, o decreto incentiva a replicação deste modelo nos níveis estadual e municipal, sempre com participação da sociedade civil.

De sua parte, a transparência e fiscalização são asseguradas por diretrizes específicas que incluem acesso público a dados, canais de denúncia acessíveis e fortalecimento das corregedorias e ouvidorias. O sistema prevê ainda registro formal obrigatório das ocorrências com resultado lesivo ou letal, bem como do uso de armamento em ambientes prisionais.

Modernização e eficiência operacional

O Decreto nº 12.341/2024 estabelece um novo paradigma para os procedimentos operacionais das forças de segurança pública, fundamentado em três pilares: padronização técnica, documentação sistemática e aperfeiçoamento contínuo.

A padronização técnica materializa-se por meio de protocolos específicos para situações críticas da atividade policial. Os órgãos de segurança pública devem normatizar aspectos como gerenciamento de crises, procedimentos de busca pessoal e domiciliar, uso de algemas e providências em casos de lesão corporal ou morte.

O decreto incorpora diretrizes internacionais consolidadas — como o Código de Conduta para os Agentes Responsáveis pela Aplicação da Lei (Resolução ONU nº 34/1979) e os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo (1999) —, adaptando-as à realidade brasileira por meio de mecanismos concretos: gradação no uso da força, priorização de métodos não violentos e critérios objetivos para uso de arma de fogo.

A documentação sistemática das ações policiais representa um importante avanço na profissionalização das forças de segurança. Sobre esse aspecto, o decreto estabelece a obrigatoriedade de relatório circunstanciado em ocorrências com resultado lesivo ou letal (artigo 3º, §5º), permitindo não apenas o controle das ações, mas também a produção de dados para aperfeiçoamento dos procedimentos operacionais. Nessa perspectiva, a exigência é complementada pelo monitoramento e avaliação sistemática das ações relacionadas ao uso diferenciado da força (artigo 6º, V).

O texto normativo supera a falsa dicotomia entre controle e eficiência operacional. As restrições ao uso de arma de fogo, como nos casos de pessoa desarmada em fuga ou veículo em bloqueio (artigo 3º, §3º), não impedem seu emprego quando necessário, mas estabelecem parâmetros técnicos objetivos.

Ressalte-se, ademais, que o decreto institui um ciclo de aperfeiçoamento contínuo dos procedimentos operacionais, exigindo a “elaboração e atualização de atos normativos que disciplinem o uso diferenciado da força” (artigo 6º, I). Dita abordagem dinâmica permite que os protocolos evoluam conforme as experiências práticas e as mudanças no contexto operacional, consolidando um modelo de segurança pública profissional e tecnicamente orientado.

Considerações finais

A análise jurídica do Decreto nº 12.341/2024 revela uma norma que transcende o debate político-partidário, estabelecendo um importante marco regulatório para o uso da força por profissionais de segurança pública no Brasil. Sua constitucionalidade fundamenta-se não apenas na competência regulamentar do Presidente da República, mas principalmente na estrutura do federalismo cooperativo brasileiro, que atribui à União papel coordenador em políticas públicas de alcance nacional.

O sistema integrado estabelecido pelo decreto harmoniza três dimensões fundamentais: princípios e diretrizes técnicas para o uso da força, garantias concretas para os profissionais de segurança pública e mecanismos efetivos de controle e transparência. Esta integração supera a falsa dicotomia entre eficiência operacional e controle da atividade policial, demonstrando como procedimentos padronizados e tecnicamente orientados contribuem simultaneamente para a proteção dos agentes de segurança e da sociedade.

A modernização proposta pelo decreto materializa-se em instrumentos concretos: capacitação continuada, equipamentos adequados, protocolos específicos para situações críticas e ciclos de aperfeiçoamento baseados em dados e experiências práticas. O alinhamento com diretrizes internacionais, adaptadas à realidade brasileira, evidencia o compromisso com a profissionalização das forças de segurança sem desconsiderar as particularidades nacionais.

Por sua vez, o condicionamento dos repasses federais à implementação destas medidas não configura violação da autonomia federativa, mas sim mecanismo legitimo de indução de políticas públicas, já consolidado em outras áreas como saúde e educação.

Assim, o Decreto nº 12.341/2024 representa avanço significativo na modernização da segurança pública brasileira, estabelecendo bases sólidas para uma atuação policial que atenda simultaneamente às exigências operacionais e aos princípios democráticos. Sua implementação efetiva, apoiada pelos mecanismos de financiamento e suporte técnico previstos, tem potencial para promover transformação duradoura nas práticas de uso da força no Brasil.

Frederico Cesar Leão Encarnação

É mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa), mestre em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Estadual de Roraima (UERR), defensor público do estado de Roraima.

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