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Os Estados Unidos e o dilema da exportação de armas: uma contradição na América Latina

As autoridades norte-americanas demonstram clara falta de compromisso em conter o contrabando de armas que parte de seu próprio território.

Carlos Nascimento
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/ | Edição nº 261
08/02/2025 às 10h21
Os Estados Unidos e o dilema da exportação de armas: uma contradição na América Latina

Os Estados Unidos frequentemente se apresentam como um bastião da segurança e da luta contra o crime organizado. Suas políticas para conter a imigração ilegal e o tráfico de drogas, além de fortemente financiadas, são amplamente divulgadas como essenciais para proteger suas fronteiras e seu povo, tendo sido inclusive um dos principais temas da recente eleição vencida por Donald Trump. No entanto, uma questão que raramente ganha destaque é o papel dos EUA como fonte primária de armas de fogo que alimentam o crime organizado em toda a América Latina. Essa exportação desenfreada de armamentos levanta questões sobre a ausência de coerência das políticas de segurança americanas e seus impactos devastadores em regiões vizinhas.

Os Estados Unidos gastam bilhões de dólares para combater o tráfico de drogas e conter a imigração ilegal em suas fronteiras, enquanto fecham os olhos para o fluxo de armas que sai de seu território. Dados do Small Arms Survey indicam que as apreensões de armas de fogo destinadas à América Latina e ao Caribe aumentaram 120% entre 2016 e 2023. Esse aumento coincide com o crescente uso de rifles de assalto, como AK-47 e AR-15 por cartéis de drogas, gangues e outros grupos armados na região. Reportagem da CBS News revelou que entre 200 mil e 500 mil armas americanas são contrabandeadas anualmente para o México, formando o que é conhecido como o “rio de ferro”. Essas armas alimentam o poder de fogo dos cartéis e perpetuam uma espiral de violência. Apesar disso, as regulamentações internas sobre exportação de armas permanecem insuficientes, permitindo que grandes volumes de armamentos escapem de controles eficazes. Essa contradição reflete a dissociação entre as preocupações de segurança interna e a responsabilidade internacional dos EUA.

Na América Latina, o fluxo de armas dos Estados Unidos não é apenas um problema criminal, mas uma crise humanitária. Em países como o México e Brasil, rifles de alta potência são frequentemente utilizados por organizações criminosas em confrontos armados, resultando em milhares de mortes anuais. O Caribe enfrenta desafios semelhantes, com gangues bem armadas em lugares como Haiti e República Dominicana desafiando a soberania dos Estados e criando zonas de conflito onde a violência reina. O impacto não se limita à perda de vidas. A instabilidade gerada por essas armas compromete o desenvolvimento econômico, aumenta os deslocamentos forçados e dificulta a implementação de políticas públicas efetivas. Em muitos casos, governos locais já sobrecarregados pelo combate ao tráfico de drogas e o controle territorial exercido por cartéis são incapazes de lidar com o aumento da violência armada.

A resposta para essa questão encontra-se na influência política e econômica da indústria de armas nos EUA. Esse setor, que gera bilhões de dólares em receita anual, exerce enorme pressão sobre o Congresso e outros órgãos regulatórios. Qualquer tentativa de impor regulamentações mais rigorosas é prontamente combatida com argumentos que invocam a Segunda Emenda da Constituição e a liberdade individual. Ademais, a prioridade política do governo americano está em impedir ameaças que entrem em seu território, relegando o impacto de suas políticas sobre outros países a um segundo plano.

Essa relação desbalanceada é ilustrada pelo “Episódio Guzmán”. Em 2019, a captura de Ovidio Guzmán López, filho do notório El Chapo, levou a um confronto armado entre as forças mexicanas e cerca de 600 membros do cartel de Sinaloa. Com o uso de armas como fuzis calibre .50 vindos dos EUA, o cartel dominou a batalha, forçando a liberação de Guzmán e expondo a vulnerabilidade das forças de segurança mexicanas. Essa situação não é isolada. Segundo dados apresentados pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, cerca de 47% dos fuzis apreendidos em confrontos armados na capital fluminense eram provenientes dos EUA. Tim Sloan, ex-agente do ATF, relatou cenas horrendas em fazendas de cartel, onde todas as armas recuperadas eram americanas. Ele descreveu como compradores de fachada nos EUA, muitas vezes jovens sem histórico criminal, adquiriram centenas de armas para os cartéis.

Os EUA pressionam seus vizinhos latino-americanos a reforçar a segurança fronteiriça, combater o tráfico de drogas e controlar a imigração, inclusive com ameaças de retaliações tarifárias e até militares, como o presidente eleito Donald Trump fez recentemente ao se referir ao tráfico de fentanil por cartéis mexicanos. No entanto, demonstram clara falta de compromisso em conter o contrabando de armas que parte de seu próprio território. Essa hipocrisia mina relações diplomáticas e gera ressentimento entre países que se veem obrigados a lidar com as consequências da violência armada. Essa situação contrasta com as exigências americanas para que o México controle seus fluxos de drogas e imigrantes, ignorando como o tráfico de armas contribui para esse cenário e dificultando ainda mais o trabalho do governo mexicano.

O combate ao tráfico de armas requer ações concretas e colaborativas. Entre as medidas que podem ser tomadas pelos EUA, destacam-se: fortalecimento do controle sobre exportação de armas com a criação de um sistema mais robusto de rastreamento e inspeção, incluindo maior fiscalização em portos e fronteiras; colaboração internacional, trabalhando com governos latino-americanos para identificar rotas de tráfico, compartilhar dados sobre armas apreendidas e oferecer suporte técnico; revisão das leis internas, reduzindo lacunas legais que permitem que armas adquiridas legalmente sejam desviadas para o mercado ilegal; maior transparência, divulgando dados sobre armas rastreadas e apreensões para facilitar investigações conjuntas e políticas baseadas em evidências; e pressão sobre fabricantes, exigindo que as indústrias implementem medidas de segurança mais rigorosas para evitar o desvio de armamentos.

A postura dos Estados Unidos em relação à exportação de armas para a América Latina é uma contradição gritante que precisa ser enfrentada. Enquanto buscam proteger suas fronteiras, falham em reconhecer que a violência armada em regiões vizinhas é, em grande parte, alimentada por políticas internas permissivas e pela indústria de armas. Sem uma abordagem mais equilibrada e responsável, os Estados Unidos continuarão a ser cúmplices indiretos da violência que devasta a América Latina. O controle eficaz do tráfico de armas não é apenas uma questão de justiça para os países afetados, mas também um passo essencial para construir uma região mais segura e estável. É hora de os EUA assumirem sua responsabilidade nesse cenário e agirem de forma decisiva para conter o fluxo de armamentos que perpetua a violência na América Latina.

ROBERTO UCHÔA - Policial federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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