Segunda, 10 de Fevereiro de 2025
26°C 27°C
Salvador, BA
Publicidade

OPERAÇÃO DAKOVO: Como um posto da PRF na Bahia iniciou o maior golpe no tráfico de armas

Entre 2019 e 2023, estima-se que empresa paraguaia tenha importado ilegalmente 46 mil armas, das quais 17 mil chegaram ao Brasil, incluindo 2.656 fuzis.

Carlos Nascimento
Por: Carlos Nascimento Fonte: fontesegura.forumseguranca.org.br/ | Edição nº 263
10/02/2025 às 11h44
OPERAÇÃO DAKOVO: Como um posto da PRF na Bahia iniciou o maior golpe no tráfico de armas

Há pouco mais de dois anos, o então ministro Flávio Dino, ao lado de representantes do governo do Paraguai, Polícia Federal (PF) e Ministério Público Federal (MPF), anunciava os resultados da Operação Dakovo. Autoridades frequentemente recorrem a superlativos para classificar seus êxitos, mas neste caso não há exagero em chamá-la de maior operação de combate ao tráfico de armas do Brasil, e possivelmente uma das maiores do continente. Foram dezenas de prisões e buscas realizadas no Paraguai, Brasil e Estados Unidos, além do bloqueio de R$ 66 milhões. Entre os presos, destacam-se militares paraguaios de alta patente no Exército e até um ex-comandante da Força Aérea, envolvidos no esquema criminoso em troca de subornos.

A operação revelou o papel central da empresa paraguaia IAS (International Auto Supply), fundada por argentinos, que começou negociando automóveis e passou a importar armas em 2012. Entre 2019 e 2023, estima-se que tenha importado 46 mil armas, das quais 17 mil chegaram ao Brasil, incluindo 2.656 fuzis. Para contextualizar, o recorde anual de apreensão de fuzis no Rio de Janeiro é de 732 armas; a IAS poderia sozinha suprir três anos e meio de apreensões recordes de fuzis no RJ ou até 20 anos em São Paulo! A abrangência do esquema impactava todo o território: a PF documentou 67 apreensões que totalizaram quase 700 armas, espalhadas por 48 cidades de 12 estados em quatro regiões do Brasil. Ficou comprovado que a IAS abastecia as duas maiores facções criminosas brasileiras, Comando Vermelho e PCC.

Curiosamente, uma operação tão grandiosa começou de forma modesta. Em novembro de 2020, uma fiscalização de rotina da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em um ônibus na Bahia apreendeu 23 pistolas croatas e dois fuzis. Apesar de ser considerada uma apreensão significativa para padrões brasileiros, casos como esse frequentemente encerram-se apenas na condenação por porte ilegal do transportador ilegal (com baixa importância na hierarquia). No entanto, o Serviço de Repressão ao Tráfico de Armas da PF decidiu investigar mais a fundo. Intrigada pelas pistolas croatas, até então incomums no mercado ilegal, solicitou a recuperação dos números de série, que haviam sido apagados. A análise revelou a origem das armas e, com apoio decisivo do Centro Nacional de Rastreamento, chegou-se à empresa paraguaia.

Por si só essa investigação inicial já seria notável, considerando que muitos fabricantes, ao serem notificados sobre o uso criminoso de suas armas, suspendem voluntariamente exportações para determinados clientes, como ocorreu com a empresa croata. A PF foi além. Requisitou dados de importação às autoridades paraguaias e aos fabricantes e passou a mapear apreensões de armas relacionadas à IAS em diferentes estados brasileiros, com a colaboração de polícias civis e regionais da PF. Em muitos casos, as armas sequer haviam passado por tentativas de recuperação de números de série, algo infelizmente comum no Brasil.

O trabalho minucioso de três anos revelou um esquema criminoso sofisticado, dividido em diversos núcleos. O núcleo de importação recrutava fabricantes de pistolas e fuzis, enquanto armeiros paraguaios “sanitizavam” as armas, apagando números de série e outras marcas e, em alguns casos, acoplando seletores de rajada para transformá-las em submetralhadoras, o que aumentava seu valor no mercado ilegal. O núcleo de logística recrutava transportadores que utilizavam carros com compartimentos ocultos, caminhões com cargas mistas e passageiros que levavam as armas em ônibus de turismo. Já o núcleo financeiro operava a lavagem de dinheiro, com valores transferidos do Paraguai para os Estados Unidos por meio de doleiros e empresas de fachada em Miami para pagar fabricantes no Leste Europeu.

A Operação Dakovo é um típico exemplo de manual que mostra como o trabalho integrado entre autoridades pode desmantelar esquemas complexos. Desde a busca veicular no ônibus na Bahia até a cooperação com a Interpol e autoridades paraguaias, cada etapa demandou iniciativa, vocação e profissionalismo. A operação só foi possível porque agentes desafiaram padrões: peritos/as que insistiram na recuperação de números de série, policiais federais que conectaram evidências dispersas com apoio de policiais civis estaduais e colaboradores internacionais que atenderam pedidos de rastreamento. Muitas vezes, profissionais envolvidos em diferentes etapas de uma investigação podem sentir que seu trabalho é pequeno ou desconectado do resultado final. A Operação Dakovo demonstra o contrário: o esforço de cada elo da engrenagem é indispensável para o sucesso de ações dessa magnitude.

Esse trabalho, digno de muitos aplausos, deveria inspirar o Governo Federal em sua estratégia de combate ao tráfico de armas, fortalecendo a colaboração entre órgãos nacionais e internacionais, priorizando a identificação completa,  recuperação de números de série e rastreamento sistemático de armas apreendidas. Em âmbito estadual, é crucial que mais estados sigam os exemplos do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Paraíba, criando delegacias especializadas no combate ao tráfico de armas.

A Operação Dakovo provou que é possível enfrentar o tráfico de armas com resultados concretos e duradouros. Seu legado é um chamado à ação: investir em estratégias integradas para proteger a sociedade e impedir que armas continuem abastecendo o crime organizado.

Bruno Langeani - Mestre em políticas públicas pela Universidade de York (UK) e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Autor do livro “Arma de fogo no Brasil, gatilho da Violência”.

fontesegura.forumseguranca.org.br/  |  Edição nº  263

Clique na IMAGEM e acesse a Coluna Fonte Segura/PÁGINA DE POLÍCIA, espaço destinado para publicações de artigos dos articulistas do Fonte Segura/Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

* O conteúdo de cada comentário é de responsabilidade de quem realizá-lo. Nos reservamos ao direito de reprovar ou eliminar comentários em desacordo com o propósito do site ou que contenham palavras ofensivas.
500 caracteres restantes.
Comentar
Mostrar mais comentários
MÚLTIPLAS VOZES Há 9 horas

A descapitalização do crime organizado como estratégia de contenção do poder paralelo

Dentre os avanços institucionais recentes, a estruturação das Forças Integradas de Combate ao Crime Organizado (FICCO) revela-se como um marco na luta contra as facções criminosas.

ESPECIAL Há 10 horas

POR UMA REFORMA ESTRUTURAL NA SEGURANÇA PÚBLICA

O que se pretende a partir da PEC da Segurança Pública é maior integração entre a União e os entes federados na elaboração e na execução de políticas de combate à violência e ao crime organizado.

PROFISSÃO POLÍCIA Há 11 horas

NO LIMITE DAS SUAS CERTEZAS: reflexões sobre o adoecimento psíquico de policiais

No atual cenário nacional, torna-se urgente modernizar os instrumentos de trabalho e implementar medidas de cuidado e proteção aos policiais, sobretudo em estados mais afetados pela expansão da criminalidade organizada rumo ao interior do país.

PERÍCIA EM EVIDÊNCIA Há 12 horas

O QUE O FUTURO NOS RESERVA: Avanços que impulsionam as Ciências Forenses do Século XXI – Parte 1

Uma breve descrição de avanços proporcionados por métodos desenvolvidos exclusivamente para a Criminalística. São muitos os exemplos, que não apenas apontam tendências, mas que certamente vão ser incorporados cada vez mais por serviços periciais, nessa eterna luta que é a elucidação de crimes e busca pela justiça.

LOGÍSTICA-CRIMINAL Há 12 horas

Conhecendo a rede logística-criminal do narcogarimpo e do garimpo ilegal na Amazônia

A atividade de garimpagem ilegal estabelece uma complexa rede de aeroportos e portos ilegais, envolvendo acordos com as elites econômicas e políticas locais, além de esquemas de corrupção com a participação de agentes do estado. Todos esses elementos são de interesse do narcotráfico.

FONTE SEGURA
FONTE SEGURA
Espaço destinado para publicações de artigos dos articulistas do Fonte Segura/Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ver notícias
Salvador, BA
27°
Tempo nublado
Mín. 26° Máx. 27°
29° Sensação
5.93 km/h Vento
72% Umidade
100% (3.25mm) Chance chuva
05h31 Nascer do sol
05h31 Pôr do sol
Terça
27° 26°
Quarta
27° 25°
Quinta
27° 26°
Sexta
27° 26°
Sábado
28° 26°
Publicidade
Publicidade


 


 

Publicidade
Economia
Dólar
R$ 5,78 -0,14%
Euro
R$ 5,96 -0,13%
Peso Argentino
R$ 0,01 +0,00%
Bitcoin
R$ 599,831,30 +0,62%
Ibovespa
125,571,81 pts 0.76%
Publicidade
Publicidade
Enquete
Nenhuma enquete cadastrada
Publicidade
Anúncio