Nos últimos anos, o enfrentamento ao crime organizado no Brasil tem passado por uma transformação que transcende o mero esforço repressivo. Se antes a lógica da persecução penal gravitava em torno da neutralização física dos agentes criminosos – via prisões e operações ostensivas –, hoje a racionalidade que rege o combate à criminalidade organizada se concentra na sua estrutura financeira. O entendimento de que o poder dessas facções não se sustenta apenas na violência, mas sobretudo na sua capacidade de acumulação e circulação de riqueza, levou a Polícia Federal a privilegiar a descapitalização dessas redes ilícitas.
Os números recentemente apresentados pela instituição revelam a efetividade dessa estratégia: em 2024, cerca de R$ 5,6 bilhões foram subtraídos das organizações criminosas mediante o bloqueio de contas bancárias, a apreensão de bens e o confisco de ativos de alto valor. Não se trata apenas de prejuízo material, mas de um golpe estrutural que desarticula as cadeias de financiamento das atividades ilícitas, limitando sua capacidade de reinvestimento em práticas como o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro e a corrupção institucionalizada.
Apreensão de Entorpecentes e seus Reflexos Sistêmicos
Embora a descapitalização financeira represente um avanço significativo, o confisco de mercadorias ilícitas segue como elemento complementar essencial na contenção do tráfico de drogas. O volume de apreensões em 2024 é ilustrativo: 75 toneladas de cocaína foram interceptadas antes de atingirem o mercado consumidor; quase 500 toneladas de maconha foram retiradas de circulação; e mais de 600 mil unidades de ecstasy tiveram seu destino final interrompido. A erradicação de 700 mil pés de maconha configura, por sua vez, um recorde histórico.
A interdição desses produtos não apenas enfraquece economicamente os grupos criminosos, como também reduz os impactos sociais do tráfico, entre os quais se incluem o incremento da violência urbana e a corrosão de estruturas comunitárias vulneráveis.
O Rastreamento Financeiro como Eixo Estrutural
A estratégia de descapitalização do crime organizado repousa fundamentalmente sobre a investigação financeira. A criminalidade contemporânea opera em um ecossistema econômico complexo, em que dinheiro em espécie é apenas uma fração da engrenagem. A estruturação de redes de lavagem de dinheiro, a utilização de empresas de fachada e o recurso a interpostas pessoas (os chamados “laranjas”) constituem elementos centrais desse modelo operacional.
Nesse contexto, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) desempenha papel decisivo. Como órgão responsável por receber a comunicação de operações financeiras suspeitas, sua atuação possibilita a identificação de movimentações incompatíveis com os rendimentos declarados, operações financeiras atípicas e/ou suspeitas e permite que as autoridades intervenham antes que os ativos sejam redistribuídos para novas práticas ilícitas.
A eficácia desse modelo depende, contudo, da agilidade na articulação entre as esferas de controle. Uma vez identificados os sinais de irregularidade, a pronta comunicação para as autoridades competentes para a adoção de medidas cautelares, como o bloqueio de valores e a indisponibilidade de bens, constitui fator essencial para impedir que os recursos se dissipem antes da efetiva ação estatal.
A Força Integrada e a Cooperação Interinstitucional
Dentre os avanços institucionais recentes, a estruturação das Forças Integradas de Combate ao Crime Organizado (FICCO) revela-se como um marco na luta contra as facções criminosas. Ao congregar representantes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, das polícias civis e militares, das polícias penais, além de outros órgãos especializados, a FICCO viabiliza uma abordagem cooperativa que confere maior capilaridade e inteligência às investigações.
A experiência internacional demonstra que modelos repressivos fragmentados, em que diferentes instituições atuam de maneira isolada, tendem a produzir eficácia limitada e, por vezes, a gerar zonas de impunidade. O fortalecimento da cooperação interinstitucional, portanto, corrige essa falha histórica, permitindo ações coordenadas, troca de informações em tempo real e uma atuação mais robusta contra crimes como o tráfico de drogas, a corrupção e a lavagem de dinheiro.
Os dados disponíveis já indicam que a atuação integrada das FICCO tem gerado impactos significativos na repressão ao crime organizado, configurando-se como uma peça essencial no xadrez do enfrentamento às facções.
O combate à criminalidade organizada não pode se limitar ao tradicional binômio “prisão e repressão”. A complexidade dos mecanismos de operação dessas facções impõe a necessidade de estratégias multifacetadas, em que o confisco de bens, o bloqueio de ativos financeiros e a interdição de produtos ilícitos ocupam posição central.
A ascensão da investigação financeira como instrumento primário nesse enfrentamento, aliada ao fortalecimento do COAF e à integração das FICCO, representa um avanço estrutural na contenção da criminalidade. Trata-se, em última instância, de uma mudança paradigmática que rompe com a lógica da mera contenção tática e avança na neutralização sistêmica das organizações criminosas.
Os desafios permanecem, e a resiliência desses grupos exige que o Estado aperfeiçoe continuamente suas estratégias. Mas a experiência recente sugere que a descapitalização representa um caminho promissor e, talvez, o mais eficaz na luta contra o crime organizado no Brasil.
Ricardo Andrade Saadi - Diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado e à Corrupção da Polícia Federal.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | Edição nº 264
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