O mês de janeiro é considerado o período para conscientização acerca da saúde mental. Na Segurança Pública, por exemplo, há ações governamentais de incentivo para que agentes procurem atendimentos ou que indiquem colegas que apresentam comportamento incomum. Contudo, por vários fatores, o debate e as ações de intervenções nas corporações policiais ainda são pontuais e caracteriza-se mais pelas “ausências”.
O trabalho policial militar, por exemplo, afeta a saúde integral do trabalhador, isto é, afeta a saúde física, a saúde mental e a saúde social. É como um novelo com vários nós que interligam questões de adoecimento físico, mental e social, sendo que uma questão proporciona consequências nas outras, um “motor de geração de doenças autossustentável”. Nesse caso, questões de saúde física são importante para pensar a saúde mental, mas questões de “saúde social” também são importantes, pois estão inter-relacionadas.
Os nós que interligam essas questões são de dimensões administrativas (enquanto atividades meio) e culturais (principalmente as próprias da atividade fim), que foram construídas a partir das relações históricas, políticas e econômicas. E o fio condutor é a manutenção da tradição. Apenas para iniciar uma breve análise, as questões administrativas trazem vários desdobramentos que impactam a saúde integral do policial militar. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública[1], o quantitativo de policiais militares é inferior ao mínimo necessário estipulado em cada Unidade Federativa. No Brasil, há uma defasagem de aproximadamente 30% do efetivo das Polícias Militares.
Todavia, quando verificado o efetivo de cada instituição, percebe-se que algumas polícias militares têm aproximadamente 50% do efetivo estimado, casos do Acre (53%), Amapá (39,2%), Amazonas (55%), Distrito Federal (56%), Goiás (35,7%), Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (54,5% cada), Pará (55%), Paraíba (49,4%), Pernambuco (59,3%), Rio Grande do Sul (55,8%), Santa Catarina (46%), entre outros.
Aqui cabem algumas observações:
a) os dados analisados são de 2022/2023 e houve alterações, pois no Distrito Federal há menos que 50% do efetivo em 2025; e
b) a lei/norma que estipula o efetivo policial militar em cada ente federativo não apresenta variáveis para alterar o quantitativo do efetivo como, por exemplo, variação da população residente ou construção de presídios, entre outras.
Paralelamente, a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros (lei nº 14.751/2023) não define a carga horária máxima por dia de serviço ou semanal, ou a carga horária de descanso mínimo. Desta forma, cada ente federativo regulamenta a jornada de trabalho.
A falta de efetivo e da regulamentação mínima de carga horária de trabalho nacional contrastam com o acúmulo de competências que foram historicamente construídas para as Polícias Militares. Entre as atividades desenvolvidas, além do policiamento ostensivo de trânsito, o policiamento escolar, florestal e de mananciais, ou próximo às unidades prisionais, nas áreas rurais e urbanas, há os policiamentos especializados e os policiamentos esporádicos em eventos festivos, esportivos, religiosos, políticos, entre outros, que demandam grande quantidade de agentes. Essa relação de atribuição de serviço com a falta de efetivo associa-se à ausência de parâmetros de saúde do trabalho na área de segurança pública: quando há o esgotamento físico ou psíquico? Qual o parâmetro que os policiais militares estão submetidos para definir se estão aptos para o desenvolvimento da atividade policial? Quais as possíveis consequências da possível sobrecarga horária? Quais as consequências para a eficiência e eficácia no trabalho cotidiano e a longo do tempo? Quais as consequências para a saúde mental e física a curto e longo tempo?
E se houvesse esses parâmetros, como saber se o trabalhador da segurança pública está em sofrimento? Falta monitoramento. É comum a aplicação de Teste de Aptidão Físico (TAF) e exames laboratoriais periódicos no decorrer da carreira policial militar. Todavia, os exames psicológicos são aplicados somente no processo seletivo para incorporação na instituição. Não há periodicidade de exames psicológicos para monitorar o nível de saúde mental da mesma forma que os exames físicos e laboratoriais. Em que tipo de intervenção policial é necessário o acompanhamento psicológico posterior? E a longo prazo, quais as consequências do trabalho policial militar para a saúde mental?
O risco da/na atividade policial, seja real ou imaginário, é objeto de vários estudos na Antropologia, Sociologia, Psicologia, entre ouras áreas importantes. Entretanto, há necessidade de fundamentação de outras áreas de conhecimento para subsidiar as demandas e as escolhas administrativas. Por exemplo, os instrumentos de trabalho policiais brasileiros são adaptações de outras áreas profissionais e constantemente há “testes”. Os coletes balísticos fornecidos, por exemplo, não se adaptam à atividade policial que exige mobilidade e leveza porque os turnos são de 12 horas. Os veículos são automóveis adaptados com receptáculo para pessoas detidas. Não há veículos próprio para atividade policial no Brasil, assim como não há armamento letal e com baixa letalidade, calçados e vestimentas próprias. Essas constantes adaptações de recursos também geram sensação de insegurança e aumento da sensação de risco entre os policiais militares, afetando a saúde emocional, interferindo a curto e médio prazo, nos processos de intervenção policial diários e na vida cotidiana.
Todos esses sofrimentos oriundos de diversas questões e dimensões são “suportados” por força da psicodinâmica do trabalho, como diria Christophe Dejours. Há instrumentos compensatórios socializados na instituição que modulam o sofrimento em recompensas, que transitam entre reconhecimento entre os pares e estimula a permanência, mesmo com risco a própria vida, como descreve a maioria dos juramentos de formação policial militar. Assim, a ausência de parâmetros científicos para orientar as ações cotidianas descritas em Procedimento Operacional Padrão é modulada para “só a experiência de rua com cada ocorrência é capaz de ensinar” ou “o policial militar é superior ao tempo’ é a modulação para a falta de efetivo, por exemplo.
Essas modulações também estão diretamente relacionadas à precarização da saúde social. As questões administrativas e culturais afastam o convívio na própria comunidade. Os policiais militares passivos com as ausências e faltas no trabalho, agora são agentes ativos na ausência no convívio com a própria família, com os vizinhos e na comunidade. Há uma vulnerabilidade, pois o grupo de convívio é restrito pela percepção que só policial vai entender o que sente, é temporal (a partir de ser permanecer na atividade laboral) e é um ciclo vicioso de reprodução de sofrimento modulado em prazer (relembrar histórias de ocorrências perigosas, rigidez das relações hierárquicas e disciplinares, entre outras).
Portanto, a ausência do planejamento de assistência que contemple a saúde integral composta pelo bem-estar físico, psíquico e social e que uma destas questões afeta profundamente as outras reduz o alcance das ações pontuais que são planejadas ou desenvolvidas. Antes de produzir ações, o que realmente falta são parâmetros de saúde integral mínimo na atividade de segurança pública; parâmetros para definir o mínimo como, por exemplo, o descanso e o sofrimento. Falta a prática de monitorar a saúde física e mental. Enfim, por enquanto a saúde integral está marcada pela falta, tanto na dimensão da atividade meio quanto na dimensão da atividade fim.
[1] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Raio-x das forças de segurança pública do Brasil. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Disponível AQUI:
Gilvan Gomes da Silva - 1º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | Edição nº 264
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