Num país em que a Suprema Corte reconhece um “Estado de coisas inconstitucional” em seu sistema penitenciário, estar, ter estado ou ter algum(a) parente em cumprimento de pena ou medida criminal implica reiterados processos de violações e silenciamento, sendo até mesmo o direito à voz constantemente violado por servidores(as), autoridades, pela imprensa e pela sociedade em geral.
A legislação penal brasileira, em especial a Lei 7.210/84, que instituiu a Lei de Execução Penal (LEP), estabelece o primado do direito para as pessoas em cumprimento de penas ou medidas penais, atribuindo restrições ou, no limite, a privação de liberdade como medidas de responsabilização ou punição, a depender da tipificação do crime imputado. Ainda para os casos da medida mais gravosa, a pena privativa de liberdade em regime fechado, a legislação também assegura a necessidade de preservação dos direitos fundamentais, como a dignidade humana, o direito à vida, à saúde física e mental, à educação, ao trabalho, dentre outros.
Os princípios estabelecidos na LEP foram posteriormente recepcionados na Constituição Federal de 1988, por meio da qual o Brasil procurou superar, ao menos legal e normativamente, o obscurantismo do regime ditatorial imposto em 1964, assumindo os direitos de cidadania como aspectos centrais para nossa organização societária. A Constituição Federal, além disso, adotou outro aspecto fundamental para a construção de um Estado democrático de direito, qual seja, a necessidade de estabelecer princípios e métodos para a efetiva participação da sociedade nos processos de formulação, implementação, execução e monitoramento das políticas públicas.
Quase nos aproximando de quatro décadas desde sua promulgação, os pressupostos constitucionais de participação social nas políticas públicas ainda padecem de aprimoramento, mesmo que tenham sido bem incorporados em algumas políticas, como nos casos da saúde, da educação e da assistência social, em que as vozes dos(as) usuários(as), trabalhadores(as) e demais públicos a elas afetos encontram meios de incidência e repercussão.
Esse não é, no entanto, o cenário que encontramos no campo das políticas penais, no qual os processos de criminalização das pessoas alcançadas pelo sistema de justiça transcendem as medidas e penas impostas, afetam todos os demais direitos e, mais do que isso, transbordam para amigos(as) e, sobretudo, seus familiares. Num país em que a Suprema Corte reconhece um “Estado de coisas inconstitucional” em seu sistema penitenciário, estar, ter estado ou ter algum(a) parente em cumprimento de pena ou medida criminal implica reiterados processos de violações e silenciamento, sendo até mesmo o direito à voz constantemente violado por servidores(as), autoridades, pela imprensa e pela sociedade em geral.
O “Estado de coisas inconstitucional” (ECI) designa o descumprimento, a inércia e a incapacidade sistemática do Estado em fazer cumprir seus preceitos legais, o que ocasiona a violação generalizada e persistente dos direitos fundamentais. No caso do sistema penitenciário brasileiro, tal reconhecimento ocorreu no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 347 (ADPF 347), ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em maio de 2015 e com votos concluídos no plenário do STF em outubro de 2023.
A partir desta decisão, a Suprema Corte determinou diversas medidas, dentre as quais a elaboração, pelo Poder Judiciário e pela União, de um plano nacional de enfrentamento ao Estado de coisas inconstitucional e planos estaduais e Distrital alinhados ao Plano Nacional, sendo tal processo conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, por intermédio da Secretaria Nacional de Políticas Penais. Além disso, o voto do Ministro-relator, Luís Roberto Barroso, determinou que o plano nacional fosse elaborado a partir de diálogo interinstitucional com órgãos estatais e, em especial, com a sociedade civil, a fim de efetivar uma participação colaborativa das pessoas afetadas pelas políticas penais em processo de reestruturação (Schuck da Silva e Melo, 2024, p. 60[1]).
No intuito de assegurar a participação da sociedade civil no processo de elaboração do Plano Nacional, então denominado Plano Pena Justa[2], foram realizadas duas estratégias complementares, a saber, uma consulta pública, disponibilizada por meio de formulário virtual acessível a partir das páginas eletrônicas da SENAPPEN e do CNJ, no período de 15 de abril a 05 de maio de 2024, e uma audiência pública, realizada nos dias 19 e 20 de abril, na sede do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ao todo, a consulta pública resultou na apresentação de mais de 5000 propostas, ao passo que a audiência pública levou à apresentação de cerca de 420 propostas, as quais foram analisadas, categorizadas e avaliadas para incorporação na versão original do Plano a partir da consideração de três categorias: ações já contempladas, novas ações e ações que não se aplicavam.
Em que pese o número significativo de propostas apresentadas, um fato chama atenção para a insuficiência no fomento à participação social para o enfrentamento ao Estado de coisas inconstitucional, qual seja, a inexistência de estratégia voltada a ouvir as pessoas mais diretamente afetadas pela política criminal e penitenciária, isto é, as pessoas privadas de liberdade. Dada a inexistência de estratégia oficial para que a consulta pública fosse realizada junto às pessoas privadas de liberdade, o Laboratório de Gestão de Políticas Penais, em parceria com a Federação dos Conselhos da Comunidade do Paraná (FECCOMPAR), Federação dos Conselhos da Comunidade do Rio Grande do Sul e alguns Escritórios Sociais de diferentes estados do país, encontraram uma alternativa para viabilizar a aplicação da consulta pública em estabelecimentos prisionais e junto às pessoas egressas.
Para tanto, foi gerada uma versão em formato físico do formulário virtual, a qual foi disponibilizada em redes de contatos digitais para que as instituições aplicassem os formulários, individual ou coletivamente, nas unidades prisionais:
Ainda que a estratégia, por ousada, tenha se mostrado relativamente exitosa, outros acontecimentos apontam para a persistente invisibilização das pessoas privadas de liberdade, egressas do sistema prisional e de seus familiares. Como exemplo, basta lembrar o caso da “dama do tráfico”, quando uma comitiva de representantes de Comitês de Prevenção e Combate à Tortura de vários estados foi recebida por autoridades do MJSP e do CNJ, sendo que, dentre o grupo, estava aquela que, segundo o noticiário, era companheira de um dos líderes do crime organizado do Amazonas.
A repercussão do caso foi desastrosa para aquilo que prevê o ordenamento jurídico nacional. De um lado, a imprensa tratou o fato buscando desqualificar a possibilidade de dar vozes às pessoas presas e seus familiares. De outro, as autoridades envolvidas responderam alegando que iriam aprimorar os controles dos órgãos para que tais pessoas não mais fossem recebidas. O fato evidencia que tanto a abordagem da imprensa quanto a respostas das autoridades caminham no sentido de criminalização de familiares das pessoas em privação de liberdade, da mesma forma que aponta para o silenciamento destes sujeitos, em claro desrespeito à legislação e aos princípios de participação dos(as) usuários(as) nos processos de construção das políticas penais.
Enfrentar esse dilema e assegurar que, independentemente da condição jurídica dos sujeitos, suas vozes sejam ouvidas, é o compromisso que deve nortear o respeito à participação social para o enfrentamento ao Estado de coisas inconstitucional. Imprensa, autoridades, órgãos do Executivo e do Judiciário devem levar em conta o primado do direito à livre expressão e à participação de trabalhadores(as) e das pessoas diretamente afetadas pelas políticas penais como estratégia indispensável. Sem isso, a participação será apenas de segmentos previamente autorizados e continuará a silenciar as partes mais afetadas pela seletividade penal e pelo racismo estrutural que a impulsiona.
[1] SHUCK DA SILVA, Simone e MELO, Felipe Athayde Lins de. Estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro: reflexões sobre os processos e impactos da participação social no Plano Pena Justa. In: Daniela Palma; Elaine Pereira Andreatta; Paulo Damián Aniceto [Orgs.]. Formas de dizer o direito, um diálogo entre Brasil e Argentina: discursos e práticas de nossos mundos normativos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2024. p. 53 – 85. [2] Para saber mais, ver AQUI: acesso em 19/01/2025.
Felipe Athayde Lins de Melo - Doutor em Sociologia; membro do LabGEPEN – Laboratório de Gestão de Políticas Penais, da Universidade de Brasília.
Maria Helena Orreda - Assistente social; presidente da FECCOMPAR – Federação dos Conselhos da Comunidade do Paraná.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | Edição nº 264
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