A recente decisão do governo dos Estados Unidos de designar cartéis de drogas e outras organizações criminosas como organizações terroristas representa uma mudança controversa no combate ao tráfico de drogas. Anunciada como uma resposta ousada a um problema persistente, a medida amplia o conceito de terrorismo para incluir o tráfico de drogas, justificando o uso de ferramentas legais e militares mais severas previstas na legislação. No entanto, essa abordagem levanta questões sobre sua eficácia e possíveis impactos de longo prazo, que incluem tensões diplomáticas, efeitos econômicos e desafios à estabilidade política em toda a América Latina.
Desde a “guerra às drogas” iniciada por Richard Nixon em 1971, os Estados Unidos investiram maciçamente na repressão ao tráfico e erradicação de cultivos de drogas, especialmente a folha de coca. Apesar disso, a produção e o consumo continuaram a crescer, com níveis recordes recentemente relatados pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e redes criminosas cada vez mais sofisticadas e resilientes. Ao adotar uma política que redefine as fronteiras entre segurança e soberania, os Estados Unidos enfrentam dilemas morais, políticos e estratégicos com implicações globais.
O tráfico de drogas tem apresentado um crescimento alarmante nas últimas décadas, impulsionado por fatores econômicos, sociais e políticos. Dados do UNODC indicam que a produção de cocaína na América do Sul atingiu níveis históricos, especialmente na Colômbia, com mais de 2,6 mil toneladas produzidas em 2023. O consumo global também aumentou, com aproximadamente 296 milhões de pessoas usando substâncias ilícitas no mesmo ano, representando um crescimento de 23% em uma década. Esse cenário reflete a expansão e sofisticação das redes criminosas, que diversificaram suas rotas e intensificaram sua influência em regiões estratégicas, como os portos do Equador, que se transformaram em centros logísticos para o envio de cocaína disfarçada como carga legal.
Em resposta a essa complexidade do tráfico de drogas, esforços de cooperação internacional foram impulsionados nos últimos anos. Governos de diversos países estabeleceram acordos bilaterais e multilaterais, como a Iniciativa Mérida entre os Estados Unidos e o México, e o Plano Colômbia, que recebeu bilhões de dólares para combater o tráfico de drogas. Essas parcerias envolvem compartilhamento de inteligência e recursos com o objetivo de desmantelar organizações criminosas e reduzir a produção de drogas. No entanto, apesar desses investimentos e operações coordenadas, os resultados continuam limitados, pois as organizações criminosas se adaptam rapidamente aos desafios impostos por essas políticas.
Além disso, o sucesso dessas iniciativas é prejudicado pela falta de abordagens holísticas que tratem das causas estruturais do tráfico de drogas, como a pobreza, a corrupção e a constante demanda por drogas nos países consumidores. Tensões entre os Estados Unidos e seus parceiros latino-americanos, muitas vezes marcadas por percepções de unilateralismo ou imposição de políticas, também dificultam a cooperação. A designação dos cartéis como organizações terroristas, por exemplo, pode exacerbar essas tensões, dificultando esforços para desenvolver estratégias conjuntas e eficazes de combate ao tráfico de drogas.
A decisão dos Estados Unidos tem implicações profundas, que vão desde relações diplomáticas até impactos nas economias locais e no equilíbrio interno dos países afetados. Essa política amplia as ferramentas legais disponíveis, permitindo sanções econômicas mais rígidas e a interdição de transações financeiras, no entanto, o risco de envolver inadvertidamente empresas legítimas que operam em áreas controladas por cartéis pode prejudicar economias locais e regionais, criando consequências adversas para populações vulneráveis.
No campo diplomático, a medida tende a agravar as tensões entre os Estados Unidos e países latino-americanos como México, Colômbia, Venezuela e Brasil. A percepção de interferência unilateral por parte dos EUA pode ser vista como uma afronta à soberania, complicando a cooperação necessária para combater o tráfico de drogas. Além disso, o governo de Donald Trump iniciou uma ampla guerra comercial que tende a afetar os países da região, que passam a enfrentar também as ameaças de imposição de tarifas se não obedeceram as diretrizes estadunidenses.
A designação abre caminho para potenciais intervenções militares, justificadas como medidas para proteger a segurança nacional dos Estados Unidos. No entanto, tais ações na América Latina podem intensificar a violência, fortalecer a propaganda dos cartéis e desestabilizar ainda mais a região. A história recente demonstra como operações militares externas podem ter efeitos adversos, criando ciclos de instabilidade e dificultando esforços locais para enfrentar o problema.
Além disso, a política ignora contradições dentro da própria abordagem americana, como o controle insuficiente sobre o tráfico de armas para a América Latina, que alimenta a própria violência que busca combater. Ao mesmo tempo, sanções econômicas e operações repressivas podem agravar a pobreza em comunidades dependentes das atividades ligadas às drogas, incentivando a criminalidade. Essa inconsistência mina a credibilidade dos Estados Unidos e limita a eficácia de suas ações no combate ao tráfico de drogas.
Hipocrisia na Política de Armas dos EUA
A política dos Estados Unidos contra o tráfico de drogas apresenta uma contradição fundamental: enquanto bilhões são investidos no combate às drogas e no controle das fronteiras, o país não consegue conter o tráfico de armas que alimenta a violência na América Latina. Entre 200 mil e 500 mil armas de fogo cruzam anualmente a fronteira sul dos EUA, muitas adquiridas por “compradores de fachada” e revendidas aos cartéis. Rifles de assalto e armas de calibre pesado, como rifles calibre .50, são usados por organizações criminosas em confrontos com forças de segurança e na consolidação de seu poder.
Esse fluxo de armas americanas exacerba a violência em países como o México, onde 75% das armas apreendidas em cenas de crime têm origem nos EUA. Eventos como a captura de Ovidio Guzmán, onde rifles calibre .50 comprados nos EUA foram usados para subjugar as forças armadas mexicanas, exemplificam o impacto direto desse tráfico. Apesar de investigações e processos contra fabricantes e distribuidores de armas, o poderoso lobby armamentista estadunidense e regulamentações frágeis impedem avanços significativos no controle desse comércio.
Casos como o da loja Ammo AZ, identificada como fonte de centenas de armas rastreadas em crimes no México, revelam lacunas regulatórias nos mecanismos de controle. Embora essas armas sejam frequentemente usadas em atividades criminosas, os vendedores alegam operar dentro da lei, expondo falhas no rastreamento de armas e no monitoramento de compras suspeitas. Essa falta de controle perpetua o ciclo de violência e tráfico, prejudicando países que já enfrentam desafios imensos no combate ao crime organizado.
A falta de responsabilização dos Estados Unidos no enfrentamento ao tráfico de armas enfraquece sua credibilidade como líder no combate ao tráfico de drogas e alimenta ressentimentos entre os países vizinhos. O impacto vai além da violência, afetando a estabilidade econômica e social de comunidades inteiras.
Consequências Amplas e Desafios Futuros
A mudança implementada pelos Estados Unidos provavelmente desencadeará impactos profundos e interconectados, desde tensões diplomáticas até a intensificação de crises humanitárias. No campo econômico, empresas que operam em áreas dominadas por cartéis podem enfrentar sanções por pagamentos feitos sob coação, ameaçando cadeias de suprimentos e parceiros comerciais internacionais.
A pressão sobre os cartéis por meio de sanções financeiras e ações militares pode provocar retaliações violentas, aumentando a insegurança e gerando crises humanitárias. Isso frequentemente desencadeia fluxos migratórios e deslocamentos internos, espalhando a violência para outras regiões e minando os esforços de governos locais para implementar políticas públicas eficazes.
Dado o potencial de consequências amplas dessa política, fica evidente que os riscos podem superar em muito os benefícios esperados. Em vez de ações unilaterais e militarizadas, uma abordagem mais equilibrada, que priorize a cooperação internacional genuína, o controle rigoroso do tráfico de armas e a redução da demanda por drogas, seria mais eficaz e sustentável para lidar com esse problema complexo.
Roberto Uchôa - Policial federal, Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
fontesegura.forumseguranca.org.br/ | Edição nº 264
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